– Que dia, Prócula, que dia!...
– Salve, Pôncio, estás com um ar abatido.
– Estou exausto. E lixado.
– Logo que te ouvi chegar chamei a escrava Gala para te lavar e perfumar os pés. Ela vem já. Deixa que eu te faça uma massagem nos ombros. O que aconteceu?
Pôncio Pilatos recosta-se no lectus e segura a cabeça entre as mãos.
– Os sacerdotes mandaram-me um tipo, um pregador, um judeu... para eu crucificar. Que estava a incitar o povo e a dizer que é o rei dos Judeus e que vem desde a Galileia a fazer isso. Imagina eu, que sou capaz de pagar para não ter chatices... Primeiro disse-lhes que o julgassem de acordo lá com as leis deles. Mas eles disseram que não porque não estão autorizados a matar. Portanto, a intenção já era matá-lo, a sentença já estava dada... Já o tinham levado ao Sumo Sacerdote, o Caifás, e agora traziam-no a mim, para que fosse eu a sujar as mãos. Primeiro tive de ir ter com eles lá fora porque não queriam entrar no Pretório, ficavam contaminados ou impuros para a Pessach ou lá o que é. Como me disseram que ele vinha da Galileia, mandei-o para o Herodes.
– Disseram-me que o Herodes está em Jerusalém...
– Pois, por isso mesmo é que eu o mandei. O Herodes que resolvesse mas o tipo não resolveu nada e recambiou-o para mim.
– E então? – perguntou Prócula enquanto apertava com os polegares os ombros de Pilatos.
– E então eu falei com o tipo. Era um tipo... diferente... diferente dos outros... até gostei dele, sabes?
– Sim, fala-se muito nele por aí? Os teus ombros estão tensos, duros como pedra... Chama-se Jesus, não é? Achaste-o diferente como?
– Sim, chama-se Jesus, um tipo de Nazaré, filho de um carpinteiro. Diz que é rei... Porque é que eu o achei diferente...? Sabes... Eu já estou habituado à turba, nesta altura, por causa da Pessach, querem que eu liberte um prisioneiro... Na teoria... – ressalvou espetando o indicador esquerdo. – Eles não querem escolher quem salvam, querem escolher quem condenam – separou as sílabas da última palavra. – Havias de ver os gajos que me aparecem normalmente... – Pilatos abanou a cabeça. – Uns facínoras, uns filhos da meretriz, gajos que matam e esfolam sem pestanejar, assaltantes, assassinos, violadores, incendiários... gajos muito valentes com uma adaga na mão e uma velha ou uma criança pela frente. Limpam o sebo a um almocreve para lhe roubarem umas moedas. Pois havias de os ver quando são trazidos à minha presença e sabem que os espera a cruz. Até se borram... Choram, põem-se de joelhos, suplicam, que têm mulher e filhos, que são o amparo da mãe, que não tornam, que eu tenha piedade... Cobardes de mer... Ai! Cuidado, magoaste-me!
– Hum...
– Mas este tipo... era calmo, ficou ali de pé, não suplicou, não pediu clemência, não se desculpou... ficou só calado a olhar para mim. Está bem de ver, eu tinha que lhe fazer umas perguntas, a vida dele estava nas minhas mãos. Sou um homem justo, tu sabes, Prócula, eu sou um homem justo! Tinha de arranjar um motivo para o condenar... Ou para o libertar. Mas tinha de ter um motivo.
– Claro que sim. Há quem diga que ele fez bem a muita gente... eu até tive um sonho, sabes?
– Sim, sim, eu sei... eu não acredito em sonhos. Eu acredito no meu instinto. E o meu instinto dizia-me que eu tinha de libertar o gajo.
– E não libertaste?
– Ele parecia que não queria ser libertado...
– Estranho... Vira-te lá para eu te massajar as costas.
– Põe estranho nisso! Disseram-me que entrou em Jerusalém montado num burro e com uma multidão de seguidores a aclamá-lo com folhas de palmeira. Montado num burro?!? Um gajo que quer fazer uma revolta monta a cavalo! Ou não monta, anda a pé. Um burro é que não monta.
– Realmente...
– E também disse que o tributo a César é para ser pago! Um gajo que quer fazer uma revolta não manda pagar o tributo a César!
– Pois não...
– Sim, que eu informei-me sobre ele. Dizem que anda por aí a fazer curas e a trazer mortos de volta à vida. Para mim são tudo superstições mas não consta que tenha feito mal a alguém. O único desacato... Ah! Ah! Ah! Ah! O único desacato foi atirar ao chão as mesas dos vendedores ambulantes que estão à porta do Templo. Deitou tudo ao chão e correu-os à chibatada! Olha, só por isso merecia ser libertado!
– Mas afinal quem é que disse que ele queria fazer uma revolta?
– Todos... os Sacerdotes do Templo... o Conselho de Anciãos... os Doutores da Lei... e todo o Sinédrio, reuniram-se todos. Isto foi um acontecimento, que é que tu pensas? Nunca acontece nada, Jerusalém é uma seca, eles não perdem a oportunidade... E a turba!!! Contado ninguém acredita, juro-te por Júpiter que é verdade, a turba, o povo gritava lá fora que libertasse o Barrabás, esse criminoso, e crucificasse o pregador. Mas deixa-me continuar a contar... então o gajo... onde é que eu ia? O gajo ficou ali a olhar pra mim... eu a olhar pra ele... ele a olhar pra mim...
– E...?
– E eu perguntei-lhe: Tu és o rei dos Judeus?
– E ele?
– Ele: Tu o dizes.
– Tu o dizes?!?
– Foi exactamente o que eu lhe perguntei. Eu não disse nada! Eu só perguntei se era verdade o que andavam a dizer dele... ele a pôr-me palavras na boca... Acaso eu sou judeu? Os sacerdotes é que o mandaram para mim.
– E ele?
– O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que não fosse entregue aos Judeus. – Aos Judeus, estás a ver? Como se ele não fosse judeu... – Mas o meu reino não é daqui!
– Então é rei...
– Exacto. Exacto! Foi o que eu lhe disse: Então és rei.
– E ele?
– Eu nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade.
– A verdade? Mas o que é a verdade?
– Prócula, tu compreendes-me! Foi isso mesmo que eu perguntei: O que é a verdade?
– E ele?
– Não respondeu. Mas eu também não esperei pela resposta. Eu tinha de libertar um prisioneiro judeu, tu sabes como é, a festa mais importante deles, pelo bom ambiente...
– Se isto é bom ambiente, Pôncio...
– Tenho que zelar pela Paz Romana, foi para isso que me nomearam. .. A alternativa ao Jesus era o Barrabás. Um zelote, um gajo subversivo, violento... matou um soldado nosso em Cafarnaum, não há muito tempo. E então eu perguntei-lhes, à turba, à multidão lá fora: Quereis que vos liberte o Rei dos Judeus? E eles gritaram: Esse não, antes Barrabás!
– Mas porquê?...
– Não sei... É um mistério para mim... Lá no meio deviam estar os vendilhões que ele expulsou, mais as mulheres deles, mas aquilo era muita gente, não acredito que os vendilhões, sozinhos, conseguissem influenciar a multidão...
– Então e os que o aclamaram quando ele montou no burro? Onde estavam esses? Eram muitos, não eram? Não o defenderam?
– Ou se viraram contra ele ou tiveram medo. Eu estou convencido que havia ali dedo dos sacerdotes. E eu perguntei: Então que quereis que faça daquele a quem chamais o Rei dos Judeus? E os gajos: Crucifica-o!
– Perguntaste que mal é que ele fez?
– Perguntei! Mas eles só responderam «crucifica-o, crucifica-o»... Então eu convoquei os chefes dos sacerdotes, os magistrados, aqueles notáveis todos – Pilatos sentou-se no lectus antes de prosseguir – e disse-lhes: Trouxestes-me este homem como agitador do povo, mas eis que eu, ao inquiri-lo na vossa presença, não encontrei neste homem culpa alguma em relação àquilo de que o acusais; nem mesmo Herodes, pois remeteu-o para nós. Eis que ele não cometeu nada que seja merecedor de morte. Portanto, depois de o castigar, vou libertá-lo.
– Bem!
– Falei bem, não falei, Prócula? Falei assim com... autoridade... para mostrar que sou o poder de Roma.
– Muito bem, querido, tu tens o dom da palavra. Mas castigaste-o porquê?
Prócula puxou uma sella e sentou-se em frente a Pilatos.– Por nada. Só para ver se os contentava. Mandei chicoteá-lo... Os soldados fizeram pior, entrelaçaram uma coroa de espinhos, puseram-na na cabeça, envolveram-no num manto de púrpura. Sabes como é esta gente, se puder humilhar um prisioneiro...
– Onde é que os soldados foram arranjar o manto de púrpura?
– O manto de...? Sei lá! Não faço ideia... Então eu tentei mais uma vez, levei-o à presença da turba, assim mesmo, com a coroa e o manto, a ver se eles se compadeciam. Eis o homem! Disse eu. Mas eles não tiveram piedade, voltaram a gritar: Crucifica-o! Crucifica-o! Então eu falei ainda mais uma vez com ele. Eu queria safar o gajo, percebes? Perguntei-lhe de onde era ele, nada. Calado. E eu: Não me falas? Não sabes que tenho poder para te libertar e tenho poder para te crucificar?
– E ele?
– Disse que o meu poder vem... – Pilatos virou as palmas das mãos para cima e olhou para o tecto – ... do Alto. – E encolhendo os ombros – Eu a pensar que vinha de Roma... E que... E quem o entregou a mim tinha maior pecado. Foi então que ouvi gritar lá fora: Se o libertares, não és amigo de César; todo aquele que se faz rei opõe-se a César.
– Ui... Aí é que te tramaram.
– Pois foi. Eu levei-o mais uma vez lá para fora, isto seria... pela hora sexta, o Sol estava a pique. Andávamos nisto desde manhã cedo... E perguntei-lhes: Crucificarei o vosso rei? E os sacerdotes: Não temos rei senão César.
– Hipócritas!
– Dizes bem, hipócritas. O que eu tenho aguentado para manter um mínimo de ordem nesta terra, contra todo o tipo de revoltas, sempre com a hostilidade do Templo, do Sinédrio, de tudo e todos... e agora não têm rei senão César! Eu vi a coisa a ficar mesmo feia e tu sabes o que acontecia se chegasse aos ouvidos de Roma que eu tinha permitido uma revolta na Judeia...
– E condenaste-o?
– Que remédio, tu fazias o quê? Tu, não, que tu és só uma matrona, mas imagina que eras homem e que eras eu. O que é que fazias? Deixavas rebentar uma revolta popular apoiada pelo Templo, pelo Sinédrio...? Já é suficientemente mau libertar um zelote que matou um legionário.
– Então ele lá foi crucificado. Tens as mãos manchadas de sangue inocente, Pôncio...
– Nã, nã... nem penses! Isso era o que eles queriam, desde o início. Mandei que me trouxessem uma bacia de água e lavei as mãos diante da multidão: Estou inocente deste sangue! É lá convosco! Depois escrevi um letreiro para colocarem na cruz: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. Pois vieram os sacerdotes dizer que eu não escrevesse aquilo.
– Então?
– Queriam que eu escrevesse “Eu sou o rei dos Judeus”. Só me faltava agora ditarem-me o que eu havia de escrever... e eu respondi: o que eu escrevi, escrevi. Depois, foi tudo muito rápido porque sabes que o dia deles começa ao pôr-do-sol e amanhã é sábado. Amanhã, quer dizer... amanhã para nós, para eles já é sábado, porque o Sol já se pôs. E os mortos não podem ficar na cruz durante o sábado... ou é por ser Pessach, não sei... sei que despacharam aquilo num ápice. Não passaria muito da hora nona, vem ter comigo um tipo que se apresentou como José de Arimateia, do Conselho de Anciãos. Aparentemente é amigo dele e não alinhou com os outros conselheiros. Vinha pedir-me pessoalmente que mandasse entregar-lhe o corpo para lhe dar sepultura.
– Tu autorizaste?
– Pilatos acenou com a cabeça.– Era o mínimo que eu podia fazer. Vá lá, o desgraçado teve a sorte de morrer depressa.
– Às vezes levam dias... e o tal zelote?
– O Barrabás? Achas que se reabilita?... Mais dia menos dia, vai dentro outra vez. Um assassino é um assassino. E um rebelde é um rebelde. Os zelotes não vão parar. «Só temos um rei que é César!». Está bem, está... Irra, que dôr de cabeça! Maldita a hora em que César me enviou para a Judeia...
20-23/06/2022