Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

28 março 2015

Na senda do Milénio

Na senda do Milénio, de Norman Cohn, não é uma obra de ficção mas até parece. Trata-se de um ensaio muito bem documentado, resultante de uma década de investigação séria sobre aspectos muito obscuros de uma época que, no seu todo, também é pouco conhecida.
Estou a lê-lo pela segunda vez (a primeira foi há mais de 25 anos). Faz uma interessantíssima viagem pelos movimentos milenaristas, pelas seitas heréticas e libertárias de origem popular e pelas suas ideologias surpreendentemente próximas dos movimentos revolucionários dos séculos XIX e XX. Anti-clericalismo, comunismo, liberdade sexual, igualitarismo, messianismo e todos os ideais utópicos de sociedade que atravessaram a Idade Média deixando rastos muito ténues para os historiadores pois, na maior parte dos casos, os seus mentores e seguidores pouco ou nada deixaram escrito. É maioritariamente por fontes secundárias que o autor consegue reconstituir este fascinante puzzle de extraordinária diversidade, contrariando a visão habitual de uma sociedade medieval monolítica.
COHN, Norman - Na senda do Milénio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Presença, imp. 1981

27 março 2015

Carta Aberta do PEN Clube Português



Carta Aberta do PEN Clube Português ao Presidente da República Portuguesa, aos membros do Governo e da Assembleia da República, aos órgãos de comunicação social e à população em geral, respeitante à língua portuguesa

A língua portuguesa é o nosso património comum com o qual convivemos e que utilizamos no domínio público e privado, oralmente e por escrito. Bastaria esta razão para fazer dela algo mais do que um património imaterial, que nunca deveria poder ser intervencionado sem uma ampla consulta pública e o apoio de pareceres qualificados. Ora sabemos que tal consulta pública nunca existiu e que em 2008, aquando da votação do chamado “2º Protocolo Modificativo” que permitia a imposição do “Acordo Ortográfico de 1990) ” (AO 1990), foram ignorados tanto uma petição com mais de 100000 assinaturas como opiniões e pareceres de qualificados especialistas, tendo sido tomado em conta apenas o parecer de um dos autores do AO 1990. Três anos após essa forçada “implementação”, os resultados estão à vista e decorrem não só da precipitação da mesma como da contradição básica entre as facultatividades previstas pelo texto do AO 1990 e a acção redutora do programa Lince, elaborado por uma instância (ILTEC) sem legitimidade para tal.
O PEN Clube Português segue com profunda apreensão tal processo que se traduz numa crescente iliteracia e num ostensivo caos linguístico, que chegou até às escolas e aos órgãos administrativos, e fornece diariamente exemplos que seriam ridículos se não fossem tristes sinais de insensibilidade e ignorância face a um património que é de todos. Logo nos primeiros dias após o início da forçada “implementação”, o PEN organizou uma sessão sobre o “Mal-estar com o Acordo Ortográfico” (9.1.2012) e desde então não deixou de apresentar, nas Assembleias do PEN Nacional e Internacional, propostas construtivas visando a suspensão de uma situação crescentemente insustentável até à conclusão de um amplo e sério debate que tenha em conta a experiência entretanto verificada.
O PEN Clube Português apela ao bom senso político dos agentes decisores no sentido de, no mínimo, não impor um grafolecto deficientemente elaborado e aniquilador das raízes etimológicas. Sublinhamos, dento do espírito de diálogo aberto e crítico que sempre cultivámos, a conveniência da sua suspensão enquanto se debatem medidas de fundo para colmatar o caos resultante da aplicação arbitrária de um instrumento comprovadamente ineficaz para alcançar os propósitos estabelecidos. Estes são por natureza incongruentes e absurdos: nem uma língua se pode “unificar” nas suas variantes (como o comprovam o inglês, francês e espanhol) nem uma escrita se pode “simplificar” fazendo cada indivíduo recorrer à instabilidade da sua pronúncia própria.

Lisboa, 25 de Março de 2015
Os sócios do PEN Clube Português, reunidos na Assembleia Geral ordinária



22 março 2015

Primavera

«Avisadas pelo calendário, sabemos que estamos na primavera, mas não porque as delícias da linda estação se fizessem já sentir, e cremos mesmo que as próprias andorinhas devem estar um pouco arrependidas de terem precipitado a sua chegada...»


Alma Nova. III série, n.º 1 (Abril 1922)
(Fonte: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/…/AlmaNo…/AlmaNova.htm)

18 março 2015

Ideais

MINISTÉRIO DO INTERIOR

Decreto com força de Lei de 18 de março, reorganizando os serviços das bibliotecas e archivos nacionais dependentes da Direcção Geral da Instrucção Secundaria, Superior e Especial

No interesse da Pátria e da República, urge que as Bibliotecas e Archivos portugueses operem a cultura mental funccionando, como universidades livres, facultando ao povo, na lição do livro, o segredo da vida social moderna; destruindo a ignorância, que foi o mais forte sustentaculo do antigo regime; investigando, no documento do passado, o papel de Portugal na civilização.

Pondo a população portuguesa a par da intelligencia mundial, provando scientificamente a acção social do povo que iniciou a idade moderna, pelos descobrimentos marítimos, compete ás Bibliotecas e Archivos uma das mais elevadas missões na revolução nacional.

Não é conservar os livros, mas torná-los úteis, o fim das Bibliotecas. Estabelecimentos de ensino público destinados ao progresso da intelligencia, á extensão da cultura scientifica; focos de intensa irradiação mental, quer na frequencia da sua sede, quer na leitura domiciliária, ou na expansão das collecções moveis; instituições de objectivo pedagogico, actuando pela franca e illimitada communicação com o publico; as Bibliotecas são sempre elemento de instrucção, por mais que as suas collecções pareçam dever ser apenas alvo da avara contemplação dos bibliomanos, pois que, quanto maior for a importancia das suas obras de genio, tanto maior será a acção emancipadora do pensamento, franqueando ás novas gerações o caminho do progresso incessante, a conquista de mais felicidade e de mais justiça.

Tem sido Portugal deliberadamente mantido alheio aos elementos de elevação mental que desenvolvem o esforço collectivo. O franco accesso á Biblioteca, a ampla leitura domiciliaria, as collecções moveis, as salas para crianças, a leitura no caminho de ferro, nos hospitaes e nas prisões — esse conjunto de meios que, alem de facilitar o livro, solicitam o leitor, offerecendo-lh’o em todas as condições, enviando-lh’o para todos os pontos, tem sido completamente posto á margem neste país.

Serviram em Portugal as Bibliotecas para sequestrar o livro, defendendo o povo do peccado de saber, repellindo a criança e o operario, contrariando o estudioso, trahindo o principio que manda reservar o volume raro, para impedir a leitura do livro emancipador, exercendo a censvra sobre a requisição do leitor, annullando de facto o livro, como o fazia a Inquisição, cujo crime não era destruir pelo fogo o exemplar, mas impedir pelo fogo a sua leitura.

Para o antigo regime, o perigo era pensar; para a República, o perigo é a ignorancia, crime publico, attentado contra a patria, tão prejudicial no operario como no burguês, confinando aquelle na barbara depressão da miseria, inutilizando-lhe o esforço pela incapacidade profissional e annullando este na rotina e na incultura.

Ingleses e Americanos, querendo levantar a cultura pelo self-instruction, proporcionando ao povo os meios de se instruir por si mesmo, operaram uma verdadeira revolução nas Bibliotecas. Ao tradicional conservador, cujo ideal era impedir que se folheasse o livro, substituiram o moderno propagandista, cujo orgulho profissional consiste em destruir pelo fogo milhões de volumes que, no apostolado da instrucção, se fizeram circular até completamente se inutilizarem.

Segundo o criterio dessas instituições modelares, os Palacios de Leitura, que caracterizam a nova civilização, teem um triplice fim: ensinar, informar, distrahir.

Distrahindo, facilitando a obra de entretenimento, as Bibliotecas educam para a vida mental, criando o habito da leitura, encaminhando o povo para a vida intellectual, afastando-o dos meios deprimentes, dos habitos dispersivos, dos locaes material e moralmente insalubres.

Com relação ás questões de momento, devem as Bibliotecas publicar listas de livros que possam pôr o cidadão ao corrente dos negocios publicos, habilitando-o a conhecer as leis eleitoraes, as constituições, as reformas de instrucção, os planos financeiros, tudo quanto é submetido ao seu exame pelas publicações officiais, pela discussão do Parlamento e pelo programma dos candidatos ao mandato eleitoral.

Assim, tornam se as Bibliotecas um elemento de ordem, orientando intellectualmente os cidadãos, agrupando-os pela comprehensão dos assuntos sociaes, defendendo-os da impulsão irreflectida ou da resistencia rotineira.

A Biblioteca é, pois, uma officina sempre aberta; o que representa uma economia de tempo e de trabalho, com todos os seus serviços consagrados exclusivamente ao fornecimento de livros ao publico.

Não bastam, porem, á instrucção do povo português as actuaes Bibliotecas dos grandes centros; é preciso instituir Bibliotecas Populares em todos os municipios, e fazer irradiar d’esses nucleos a corrente intellectual das Bibliotecas Moveis, que levarão os livros a todas as aldeias, engrandecendo a união da escola e tornando-a o principal centro de interesse da população.

Chamando desde já a criança á Biblioteca, prepara a Republica a nova geração consciente dos seus deveres e dos seus direitos, conhecedora de que a moderna vida social é orientada pelo livro e está expressa no livro.

Evidenciada a missão das Bibliotecas e o fira que teem em vista, procurou o Governo o meio de pôr termo á sua orientação rotineira e de apagar os traços das más administrações anteriores.

Franqueada sem restricção, a Biblioteca terá de ora ávante tal acolhimento, que o povo considerará como um prazer mental voltar ali, collaborar na vigilancia, promover doações, propagar as collecções moveis, etc. Não haverá naquele estabelecimento fins superiores ao de aumentar a leitura, fazendo irradiar o livro, quaesquer que sejam os prejuizos da sua deterioração, porque o mal irreparavel para a Patria e para a Republica seria manter a actual incultura, propositadamente conservada pelo antigo regime.

E, assim como a revolução engrandeceu a missão das Bibliotecas, de que depende o futuro; assim tambem criou aos Archivos um papel de importancia decisiva, de que depende o passado.

Urge recolher, installar, catalogar, connexar cuidadosamente, como peça justificativa do processo movido pelo povo ao regime que o opprimia, os milhares de documentos das extinctas casas religiosas, que provam o crime de entenebrecimento do povo, os montões de papeis suspeitos em que permanece o traço da dissipação.

Valerão as Bibliotecas, nesta hora de enthusiasmo, em que se torna urgente recuperar o tempo perdido, pela sua frequencia e pelas suas raridades; é aos Archivos que pertence valorizar os testemunhos de outras eras, integrando- os nas respectivas collecções.

Teremos assim Bibliotecas votadas, umas á expansão do livro, outras ao repositório da alta cultura philosophica, scientifica, literaria e artistica, e Archivos destinados aos estudos historicos, que reivindicarão o verdadeiro legado, pertencente, na historia da civilização, ao glorioso povo português.

Paços do Governo da Republica, em 18 de março de 1911 = O Ministro do Interior, Antonio José de Almeida

Diário do Governo, n.º 65 (1911, terça-feira, 21 de março)