Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

31 dezembro 2010

Feliz 2011

Aos caríssimos visitantes da biblioteca de Jacinto, faço os meus votos de um ano pleno de realizações pessoais e profissionais.
E, mesmo quando acharem que vão bater no fundo, lembrem-se de que no fundo também há coisas belas.

28 dezembro 2010

Dies irae

Já há muito tempo que ando a pensar em escrever sobre isto mas as recentes declarações do Senhor Presidente da República, sobre a necessidade de não insultar os mercados, decidiram-me.

É minha convicção que a religião está na natureza humana. Não sei porquê, não tenho qualquer explicação racional para isso, não sei em que zona do cérebro ou em que subtil registo do nosso código genético se encontra essa peculiaridade exclusivamente humana mas é um facto observável que o homem precisa de religão e, mesmo quando não a tem, arranja algo que a substitua.
Jesus de Nazaré, cujos seguidores chamaram Cristo, teve essa intuição - ou essa sabedoria. Disse que não se podem servir dois senhores sendo esses dois senhores Deus e o dinheiro. Ou um ou outro. Quem não serve Deus, serve o dinheiro. Também no Antigo Testamento a condenação da idolatria tinha esse carácter de contraponto: os que adoravam o Deus único e os que adoravam os ídolos. Mas adora-se ou idolatra-se sempre algo ou alguém: seja uma religião monoteísta, seja uma qualquer forma de idolatria, está sempre lá qualquer forma de adoração (ou de alienação) que nos afasta da simples vivência canina do caça-come-dorme. Não tenho explicação para isto.

É um facto que vivemos numa sociedade laica. Na Constituição está consagrada a liberdade religiosa mas não existe uma religião oficial. Ou será que existe?

A avaliar pelo que estamos a atravessar, parece que sim. Depois de décadas de laicismo, começa a desenhar-se uma nova religião oficial: o Capitalismo.
Bertrand Russell dizia (não por estas palavras, pois não tenho à mão o texto) que o Comunismo é uma religião cujo deus é o Estado. E eu acrescento: nessa religião, o diabo é o Capital.
Na nova religião ocidental - o Capitalismo - o diabo é o Estado e o deus é o Mercado.

O Capitalismo é, pois, a nova religião do mundo ocidental, já cansado de viver sem fés e sem crenças. E não uso a palavra religião em sentido figurado, uso-a literalmente.
A religião Capitalismo tem a sua teologia, os seus dogmas, os seus ritos, os seus sacerdotes e os seus prosélitos: tudo a que uma verdadeira religião tem direito.
O deus do Capitalismo é o Mercado. A sua teologia é a Economia (os sacerdotes-teólogos são os economistas).
A Economia tem dogmas:
O primeiro dogma é, desde logo, a existência do Mercado. Sim, a sua existência. Temos de acreditar em algo que não vemos, como num deus. O Mercado existe, é omnipresente, omnisciente e omnipotente e segui-Lo é o Caminho da Salvação.
O segundo dogma diz que o Mercado existe por si mesmo e se auto-regula não podendo nem devendo sofrer qualquer tentativa de domínio exterior. Tal como o Criador Incriado, Eterno e Necessário de São Tomás de Aquino. Quando as coisas correm mal, é porque houve tentativas (necessariamente falhadas) de O manipular.
O terceiro dogma diz que o Mercado é Bom. Não precisa de ser demonstrado, o Mercado é Bom porque só pode ser Bom. As catástrofes que provoca, a dôr, miséria e fome que propaga, a ganância e a rapina que são feitas em Seu nome, são apenas resultado do mau uso e da deturpação. O Mercado é Bom e isso não carece de demonstração. É um dogma. Como é bom, o Mercado é providente e generoso para os seus seguidores. Pelo contrário, para os Infiéis é impiedoso. Daí, dizem os sacerdotes-teólogos, não seja conveniente criticá-Lo. Sim, como o Mercado é omnisciente, sabe quando dizemos mal d'Ele, quando blasfemamos. O Mercado ira-se com as blasfémias. Quando iramos o Mercado, desabam sobre nós pragas como o desemprego.
O Mercado é caprichoso: não sabemos ao certo o que fazer para O satisfazer. Os seus desígnios são insondáveis e por isso os sacerdotes-teólogos se dedicam a estudá-Lo e a prescrutar os Seus sinais. Analisam as bolsas, como quem lê nas entranhas das aves, e fazem previsões. De acordo com essa análise, indicam os dias fasti e nefasti para investir, de acordo com critérios que só eles entendem. Tentam convencer-nos de que estes fenómenos são naturais e espontâneos embora quase todos saibamos - ou, pelo menos, intuamos - que as cotações das bolsas são manipuláveis.
O Mercado dá sinais, tem estados de espírito, reage: os sacerdotes-teólogos usam termos como "sentimento negativo" ou "sentimento positivo", "deprime-se" ou "anima-se". É preciso desagravá-Lo, pois, quando está deprimido. Defendê-Lo, criticar os que O acusam, é uma forma de O desagravar para que não se zangue ou para que tenha piedade dos pobres ignorantes (nós todos) que não sabem o que fazem nem o que dizem.
Também são necessários sacrifícios. A escolha desta palavra, que ouvimos todos os dias na boca de políticos e economistas, não é inocente. "Sacrifício" é uma palavra religiosa: significa "tornar sagrado". Assim, "dificuldades" e "privações" são apelidadas de "sacrifícios". Seriam más se não fossem sagradas. Como são "sacrifícios", são boas. Devemos aceitá-las como provações com vista a uma recompensa futura, uma Terra Prometida onde correrá Dinheiro a rodos. Claro, como em qualquer religião, é necessária a esperança numa recompensa futura, para manter a submissão, e essa recompensa é o Dinheiro.
Em qualquer sistema confessional, a proximidade entre políticos e sacerdotes-teólogos é elevada, estes estão sempre no poder, seja formalmente, exercendo cargos, seja informalmente, como oráculos e conselheiros. Esta proximidade não é casual nem circunstancial: tem um suporte teológico. É assim, dizem os sacerdotes-teólogos, porque sim, porque está certo, porque tem de se fazer política em função de Economia e de nenhum outro critério.
Na verdade, todo o Poder emana do Mercado. Não, não é do Povo, isso é uma heresia. O Poder emana do Mercado. Os dirigentes políticos têm de O seguir, de cumprir as Suas directrizes (que Ele não lhes transmite directamente mas apenas através dos Seus sinais, que os sacerdotes-teólogos interpretam).
No sistema confessional Capitalista (recordo que não existe Estado), as leis são feitas em função das indicações do Mercado, interpretadas pelos sacerdotes-teólogos. Noções como soberania e independência nacional, além de hereges, chegam a ser ridicularizadas pelo sistema confessional Capitalista. Quem sugira que as leis deveriam defender a independência nacional e os cidadãos e promover o bem comum é apelidado de socialista (sinónimo de herege, na religião Capitalista) - se tiver meios e cultura - ou de simplório e ingénuo - se for de mais modesta condição. Em qualquer dos casos, é conservador e ultrapassado.

Claro que, todos sabemos, este sistema não existe em lado algum, pelo menos implantado de forma exaustiva. Ainda existem Estados independentes, pelo menos formalmente, e a religião Capitalista ainda não é oficial. O objectivo é que um número suficiente de pessoas creiam e se submetam voluntariamente à religião e, para isso, são necessários muito proselitismo, muita alienação e muita repressão conjugados por diferentes agentes: políticos, economistas, jornalistas, comentadores. A pouco e pouco, as pessoas começam a achar normal e moralmente aceitável ser despedido sem uma causa justa, trabalhar por um salário muito inferior ao que os lucros reais do empregador permitiriam ou não ter acesso a cuidados de saúde por falta de meios para os pagar.
Mas também sabemos que, em toda a parte, mesmo nos mais violentos sistemas confessionais que a História regista, sempre houve resistências à teologia dominante. Se aqueles de nós que não andam distraídos e ainda acreditam nos valores da Liberdade, da Democracia e da Igualdade fizerem alguma coisa para os defender, a teologia Capitalista não se tornará religião oficial.
Não sei o quê, mas temos de fazer alguma coisa.

24 dezembro 2010

FELIZ NATAL

A todos os visitantes da biblioteca de Jacinto, os meus votos de que atravessem esta quadra com alegria e felicidade e que estas se prolonguem pelo ano de 2011.

(Pintura anónima existente o Museu da Misericórdia de Viseu e fotografada por mim)

06 dezembro 2010

Banquetes de Platão IV

«Nas tardes em que havia "banquete de Platão" (que assim denominávamos essas festas de trufas e ideias gerais)» (QUEIRÓS, Eça de - Civilização)

Quase dois anos depois da última receita apresentada n'A biblioteca de Jacinto, e mais de quatro anos depois da primeira, eis que me decido a publicar mais uma. Desta vez é de bochechas de porco, algo para que não encontrei qualquer receita em livros de cozinha. Como de costume, fui inventando à medida que ia fazendo...

BOCHECHAS DE PORCO EM VINHO VERDE TINTO

Eu faço tudo a olho, por isso, não dou quantidades.

Fiz uma marinada com vinho verde tinto e cenouras cortadas às rodelas e nela mergulhei as bochechas (as do porco) tendo o cuidado de as virar uma ou duas vezes para ganharem sabor por igual.
À parte, preparei uma mistura de sal marinho, tomilho seco, noz moscada e pimenta preta. Moí tudo num moinho de café que costumo usar para moer especiarias.
Esfreguei esta mistura nas bochechas (nas do porco!) e reservei.
Num tacho derreti banha de porco preto e alho esmagado. Coloquei dentro as bochechas (sim, essas...) e despejei por cima a marinada. Deixei cozinhar em lume brandinho cerca de uma hora e dez. De vez em quando deitava umas pinguinhas de água para não queimar.
Acompanhei com puré de batata.
Bom apetite!