Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.
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18 março 2015

Ideais

MINISTÉRIO DO INTERIOR

Decreto com força de Lei de 18 de março, reorganizando os serviços das bibliotecas e archivos nacionais dependentes da Direcção Geral da Instrucção Secundaria, Superior e Especial

No interesse da Pátria e da República, urge que as Bibliotecas e Archivos portugueses operem a cultura mental funccionando, como universidades livres, facultando ao povo, na lição do livro, o segredo da vida social moderna; destruindo a ignorância, que foi o mais forte sustentaculo do antigo regime; investigando, no documento do passado, o papel de Portugal na civilização.

Pondo a população portuguesa a par da intelligencia mundial, provando scientificamente a acção social do povo que iniciou a idade moderna, pelos descobrimentos marítimos, compete ás Bibliotecas e Archivos uma das mais elevadas missões na revolução nacional.

Não é conservar os livros, mas torná-los úteis, o fim das Bibliotecas. Estabelecimentos de ensino público destinados ao progresso da intelligencia, á extensão da cultura scientifica; focos de intensa irradiação mental, quer na frequencia da sua sede, quer na leitura domiciliária, ou na expansão das collecções moveis; instituições de objectivo pedagogico, actuando pela franca e illimitada communicação com o publico; as Bibliotecas são sempre elemento de instrucção, por mais que as suas collecções pareçam dever ser apenas alvo da avara contemplação dos bibliomanos, pois que, quanto maior for a importancia das suas obras de genio, tanto maior será a acção emancipadora do pensamento, franqueando ás novas gerações o caminho do progresso incessante, a conquista de mais felicidade e de mais justiça.

Tem sido Portugal deliberadamente mantido alheio aos elementos de elevação mental que desenvolvem o esforço collectivo. O franco accesso á Biblioteca, a ampla leitura domiciliaria, as collecções moveis, as salas para crianças, a leitura no caminho de ferro, nos hospitaes e nas prisões — esse conjunto de meios que, alem de facilitar o livro, solicitam o leitor, offerecendo-lh’o em todas as condições, enviando-lh’o para todos os pontos, tem sido completamente posto á margem neste país.

Serviram em Portugal as Bibliotecas para sequestrar o livro, defendendo o povo do peccado de saber, repellindo a criança e o operario, contrariando o estudioso, trahindo o principio que manda reservar o volume raro, para impedir a leitura do livro emancipador, exercendo a censvra sobre a requisição do leitor, annullando de facto o livro, como o fazia a Inquisição, cujo crime não era destruir pelo fogo o exemplar, mas impedir pelo fogo a sua leitura.

Para o antigo regime, o perigo era pensar; para a República, o perigo é a ignorancia, crime publico, attentado contra a patria, tão prejudicial no operario como no burguês, confinando aquelle na barbara depressão da miseria, inutilizando-lhe o esforço pela incapacidade profissional e annullando este na rotina e na incultura.

Ingleses e Americanos, querendo levantar a cultura pelo self-instruction, proporcionando ao povo os meios de se instruir por si mesmo, operaram uma verdadeira revolução nas Bibliotecas. Ao tradicional conservador, cujo ideal era impedir que se folheasse o livro, substituiram o moderno propagandista, cujo orgulho profissional consiste em destruir pelo fogo milhões de volumes que, no apostolado da instrucção, se fizeram circular até completamente se inutilizarem.

Segundo o criterio dessas instituições modelares, os Palacios de Leitura, que caracterizam a nova civilização, teem um triplice fim: ensinar, informar, distrahir.

Distrahindo, facilitando a obra de entretenimento, as Bibliotecas educam para a vida mental, criando o habito da leitura, encaminhando o povo para a vida intellectual, afastando-o dos meios deprimentes, dos habitos dispersivos, dos locaes material e moralmente insalubres.

Com relação ás questões de momento, devem as Bibliotecas publicar listas de livros que possam pôr o cidadão ao corrente dos negocios publicos, habilitando-o a conhecer as leis eleitoraes, as constituições, as reformas de instrucção, os planos financeiros, tudo quanto é submetido ao seu exame pelas publicações officiais, pela discussão do Parlamento e pelo programma dos candidatos ao mandato eleitoral.

Assim, tornam se as Bibliotecas um elemento de ordem, orientando intellectualmente os cidadãos, agrupando-os pela comprehensão dos assuntos sociaes, defendendo-os da impulsão irreflectida ou da resistencia rotineira.

A Biblioteca é, pois, uma officina sempre aberta; o que representa uma economia de tempo e de trabalho, com todos os seus serviços consagrados exclusivamente ao fornecimento de livros ao publico.

Não bastam, porem, á instrucção do povo português as actuaes Bibliotecas dos grandes centros; é preciso instituir Bibliotecas Populares em todos os municipios, e fazer irradiar d’esses nucleos a corrente intellectual das Bibliotecas Moveis, que levarão os livros a todas as aldeias, engrandecendo a união da escola e tornando-a o principal centro de interesse da população.

Chamando desde já a criança á Biblioteca, prepara a Republica a nova geração consciente dos seus deveres e dos seus direitos, conhecedora de que a moderna vida social é orientada pelo livro e está expressa no livro.

Evidenciada a missão das Bibliotecas e o fira que teem em vista, procurou o Governo o meio de pôr termo á sua orientação rotineira e de apagar os traços das más administrações anteriores.

Franqueada sem restricção, a Biblioteca terá de ora ávante tal acolhimento, que o povo considerará como um prazer mental voltar ali, collaborar na vigilancia, promover doações, propagar as collecções moveis, etc. Não haverá naquele estabelecimento fins superiores ao de aumentar a leitura, fazendo irradiar o livro, quaesquer que sejam os prejuizos da sua deterioração, porque o mal irreparavel para a Patria e para a Republica seria manter a actual incultura, propositadamente conservada pelo antigo regime.

E, assim como a revolução engrandeceu a missão das Bibliotecas, de que depende o futuro; assim tambem criou aos Archivos um papel de importancia decisiva, de que depende o passado.

Urge recolher, installar, catalogar, connexar cuidadosamente, como peça justificativa do processo movido pelo povo ao regime que o opprimia, os milhares de documentos das extinctas casas religiosas, que provam o crime de entenebrecimento do povo, os montões de papeis suspeitos em que permanece o traço da dissipação.

Valerão as Bibliotecas, nesta hora de enthusiasmo, em que se torna urgente recuperar o tempo perdido, pela sua frequencia e pelas suas raridades; é aos Archivos que pertence valorizar os testemunhos de outras eras, integrando- os nas respectivas collecções.

Teremos assim Bibliotecas votadas, umas á expansão do livro, outras ao repositório da alta cultura philosophica, scientifica, literaria e artistica, e Archivos destinados aos estudos historicos, que reivindicarão o verdadeiro legado, pertencente, na historia da civilização, ao glorioso povo português.

Paços do Governo da Republica, em 18 de março de 1911 = O Ministro do Interior, Antonio José de Almeida

Diário do Governo, n.º 65 (1911, terça-feira, 21 de março)

13 agosto 2014

O Bibliotecário Anarquista explica porque a Internet não substitui as bibliotecas

As quinta e sexta razões porque a Internet não substitui as bibliotecas. Depois destas, o bibliotecário anarquista parece ter desistido de publicar as restantes quatro razões. Talvez por não ter gostado da sexta. Em todo o caso, deixo-vos a fonte para o texto original, da American Library Association, aqui.

5. Pode o Estado comprar apenas um e-book e distribui-lo por todas as bibliotecas universitárias?

Sim, e nós podemos também ter apenas uma escola secundária nacional, uma universidade nacional, e um pequeno número de professores universitários, que irão ensinar toda gente pela Internet. (…)
Desde 1970 cerca de 50.000 títulos académicos foram publicados anualmente. Dos cerca de 1,5 milhões de títulos publicados desde então apenas alguns milhares estão disponíveis. Dos títulos publicados antes de 1925 (títulos que muito provavelmente já caíram no domínio público) apenas 20.000 estão disponíveis. Por quê? Se não existem nenhumas restrições de copyright que façam os preços elevar-se. Por último, os vendedores que fornecem os e-books permitem apenas a existência de uma cópia por biblioteca. Se o leitor x está a ler o e-book, o leitor y tem de esperar que o x o “devolva” para aceder ao seu conteúdo…
6. Ei amigo! Já te esqueceste dos leitores de e-books?...

“A maioria de nós já se esqueceu do que foi dito em tempos sobre o microfilme («vamos reduzir as bibliotecas para o tamanho duma caixa de sapatos») ou quando a televisão educativa foi inventada («no futuro vão ser necessários poucos professores»). Tente obrigar um leitor a utilizar um e-book mais de meia hora. Dores de cabeça e fadiga visual serão provavelmente os melhores resultados que conseguirá. Além disso se tiver de ler mais de duas páginas o leitor irá certamente imprimir o texto…”

Esta razão, sinceramente, não me convence… Fico na mesma. “So what?...”

12 agosto 2014

O Bibliotecário Anarquista explica porque a Internet não substitui as bibliotecas

Não vou publicar um post por dia com as dez razões porque a Internet não substitui as bibliotecas, já que se trata de revisitar um blogue antigo que está disponível, ainda, para quem o quiser ler. E bem merece. Mas vou publicá-las todas, com a devida vénia, não vá o Adalberto Barreto decidir retirar o seu blogue «O bibliotecário anarquista» do nosso convívio. Desde já, as segunda, terceira e quarta razões porque a Internet não substitui as bibliotecas.

2. A agulha (a sua pesquisa) num palheiro (a Web)

«A Internet é como uma extensa biblioteca por catalogar. Se utilizarmos o Hotbot, o Lycos, o Dogpile, o INFOSEEK, ou qualquer outro motor de busca ou de meta dados não estamos, na verdade, a pesquisar a Internet inteira. Os motores de busca prometem frequentemente pesquisar e recuperar tudo mas na verdade não o fazem. Por outro lado, o que pesquisam não tem em conta actualizações diárias, semanais, ou ainda mensais, independentemente do que anunciam. Se um bibliotecário disser: «aqui estão 10 artigos sobre nativos americanos, temos mais 40 mas para já não o deixamos ver. Vamos esperar que encontre noutra biblioteca», nós mandamo-lo àquela parte. Na Internet isto acontece com frequência e ninguém se importa»

3. Não existe controlo de qualidade

Sim, precisamos da Internet, mas para além de toda informação científica, médica e histórica, a Net é também um poço cheio de lixo. Quando os jovens cibernautas não se estão a dedicar à educação sexual através de sites XXX [que por sinal acho muito bem!], estão provavelmente a aprender política através da freeman Web page, ou a bondade das relações inter-étnicas através do site do Ku Klux Klan, ou pior ainda, Biblioteconomia avançada através do Bibliotecário Anarquista. Não existe, portanto, controlo de qualidade na Internet e não parece que alguma vez venha a existir. Ao contrário das bibliotecas onde a imprensa cor-de-rosa não entra ou entra raramente, a vaidade e o ego são muitas vezes o fio condutor da Net [e este weblogue é disso um exemplo flagrante] onde qualquer tolo pode pôr online qualquer espécie de dejecto tóxico sem o menor problema.

4. Aquilo que ficamos sem saber pode ser fatal

«Uma das grandes conquistas dos leitores nas bibliotecas tem sido o acesso online aos jornais eletrónicos. Contudo os magníficos sites que disponibilizam os textos completos, nem sempre o fazem de forma “completa”. E aquilo que ficamos sem saber pode ser fatal.
Assim:
- Os artigos nestes sites são muitas vezes incompletos e entre outras lacunas não costumam apresentar “notas de rodapé”.
- Tabelas, gráficos e fórmulas também não costumam surgir de forma legível;
- Os títulos dos jornais online mudam muitas vezes sem qualquer espécie de aviso;
- Uma biblioteca pode começar com x títulos em Setembro e acabar com Y títulos em Maio. O problema é que esses títulos não são os mesmos que o pacote Setembro-Maio.
- Embora a biblioteca possa ter pago 100.000$ pela assinatura anual, raramente é notificada ou informada sobre qualquer mudança.
Não trocaria o acesso a jornais electrónicos por nada neste mundo, contudo a sua utilização deve ser bem medida, ajuizada e planeada, não se devendo conferir de imediato uma confiança total, completa e exclusiva».

O Bibliotecário Anarquista explica porque A Internet não substitui as bibliotecas

Apesar de ter, oficialmente, morrido a 24 de Outubro de 2010, O Bibliotecário Anarquista, do meu amigo Adalberto Barreto, é um blogue que tenho sempre prazer em revisitar.
Reencontrei esta série de posts com o título genérico «A Internet não substitui as bibliotecas: 10 razões (uma por dia)», publicados em 2006. Apesar dos números apontados estarem claramente desactualizados e o volume de informação disponível na Internet ser, oito anos depois, incomparavelmente maior, estas dez razões não perderam pertinência nem actualidade. Infelizmente, o bibliotecário anarquista só publicou a seis primeiras mas deixou a ligação para a fonte. Essa ligação está desactualizada mas o texto original pode continuar a ser lido aqui. Por isso as recordo aqui, mais uma vez, para os leitores que só recentemente chegaram à biblioteca de Jacinto.
A primeira pode ser lida aqui mas receando que, depois de morto, o blogue se decomponha, transcrevo-a com a merecida vénia.

1. NEM TUDO ESTÁ DISPONÍVEL NA INTERNET

«Com mais de um bilião de páginas WEB, nunca o diríamos pela simples observação. No entanto, muito poucos materiais com conteúdo certificado estão disponíveis na Internet em acesso livre. Por exemplo, apenas 8% dos jornais científicos estão online e quanto aos livros a percentagem ainda é menor. Ainda assim quando estão acessíveis o seu acesso não é gratuito (ao contrário das bibliotecas). Se quisermos aceder ao Journal of Biochemistry, Physics Today, Journal of American History, temos de pagar e não é pouco».

08 fevereiro 2008

Empréstimo ou aluguer (6)

Vou retomar aqui um tema que interrompi há alguns meses. Este e os próximos posts foram escritos ao longo destes meses mas fui sempre adiando a sua publicação.

Insisto em olhar sempre as várias facetas de uma questão.
Defendo intransigentemente o acesso livre à informação e à cultura.
Defendo, naturalmente, que o Estado deve proporcionar igualitariamente todos os meios para esse acesso e que esses meios devem ser, obviamente, financiados pelo erário público ou seja, por todos nós que pagamos impostos.
Não defendo, contudo, que o acesso à cultura - como à saúde, à instrução ou a qualquer outro direito - deva ser proporcionado a todos lesando direitos fundamentais de alguns.
Pretender que as bibliotecas públicas - logo, o Estado - proporcionem o empréstimo gratuito à custa dos direitos de autor é «serrar presunto em casa dos outros». Muito fácil e muito desonesto.

Não, queridos visitantes deste sanctus sanctorum da liberdade que é a biblioteca de Jacinto Galeão! Não me passei para o outro lado da barricada. Leiam até ao fim, se tiverem paciência.

É um facto consumado que o comodato (vulgo empréstimo) público vai ser taxado. A vizinha Espanha já mudou a lei (Ley 10/2007, de 22 de Junio). A Itália, se não mudou, vai mudar. A Irlanda, idem. E nós vamos também. Vamos todos, quais carneirinhos obedientes, baixar a cabecinha e enfiar-nos no redil europeu. Claro, os utilizadores das bibliotecas não vão pagar pelo empréstimo, era o que mais faltava. O empréstimo vai ser pago pelo orçamento das bibliotecas ou pela administração central do estado.
Não há volta a dar. O lobby das editoras, dos livreiros e das discográficas, que já conseguiu pôr-nos a pagar taxas pelas cassetes virgens, pelos CD graváveis, pelos equipamentos de reprodução (mesmo quando todos estes sejam usados para gravarmos e filmarmos a nós mesmos e aos nossos amigos), vai conseguir, agora, pôr-nos - através do orçamento das câmaras ou do Ministério da Cultura - a pagar taxas também pelo empréstimo nas bibliotecas.
Tudo para não lesar os bolsos dos autores! Dizem eles...

Mas será que é mesmo? Vejamos.

A defesa do empréstimo pago assenta em algumas premissas que, a serem verdadeiras, justificariam a pretensão.

Todos os leitores de livros são compradores de livros.

Por cada livro emprestado na biblioteca há um livro que fica por vender na livraria.

De cada vez que alguém lê um livro sem pagar por isso está a explorar o trabalho do autor.

O mais importante para um autor é vender os seus livros.

Não sei se haverá alguém que consiga ler estas premissas sem se aperceber do profundo ridículo que lhes subjaz. Pelo menos alguém de boa fé, de espírito aberto, alguém que não tenha interesse pessoal no assunto.
Eu não tenho. Graças a Deus, nunca deixei de ler um livro por não ter dinheiro para o comprar. Eu não preciso das bibliotecas públicas para ler o que quero. Se eu quero ler um livro, compro-o. Tal como faço se quero ouvir um disco ou ver um filme. Eu não tenho qualquer interesse pessoal no empréstimo gratuito. Também não trabalho numa biblioteca que faça empréstimo pelo que não tenho, sequer, uma posição a defender, uma política a justificar.

Eu limito-me a pensar. E a usar o bom senso que é uma coisa que falta cada vez mais por aí.

Vejamos a primeira premissa:

1ª Todos os leitores de livros são compradores de livros.

ERRADO. Todos os leitores de livros são potenciais compradores de livros. Isso significa que os leitores podem ou não comprar os livros que lêem; que os leitores podem só comprar livros que ainda não leram; ou até que os leitores podem só comprar livros que já leram. O comprador de livros pode nunca pôr os pés na biblioteca e, mesmo que o faça, se é um habitual comprador de livros, não irá deixar de os comprar por causa da biblioteca. Pelo contrário, um leitor que não é comprador de livros pode tornar-se, por causa da biblioteca: porque leu, porque adquiriu hábitos de leitura, porque quer levar para casa os livros que de que gostou e que conheceu, precisamente, na biblioteca.

2ª Por cada livro emprestado na biblioteca há um livro que fica por vender na livraria.

ERRADO. Se o habitual comprador de livros não vai deixar de comprar por causa da biblioteca e o leitor que não costuma comprar pode passar a fazê-lo é óbvio que, por cada livro emprestado na biblioteca, há um livro na livraria que ganha hipóteses de vir a ser comprado.

3ª De cada vez que alguém lê um livro sem pagar por isso está a explorar o trabalho do autor.

ERRADO. Errado pelo que já ficou dito em relação às duas premissas anteriores. E errado porque isso equivale a comparar o trabalho criador ao trabalho numa fábrica. O trabalho de um autor - seja ele artístico ou científico - tem muito mais implicações e consequências que se estendem muito para além das cem, duzentas ou mil folhas de papel de um livro ou dos poucos gramas de plástico de um CD. As suas consequências a curto e longo prazo são imprevisíveis e o impacto que podem ter no seu público não são mensuráveis mediante qualquer fórmula matemática. Um livro pode mudar para sempre a vida de uma pessoa. Como é que se contabiliza isto?

4ª O mais importante para um autor é vender os seus livros.

ERRADO. ERRADÍSSIMO! Talvez a maior mentira no meio disto tudo, exactamente porque é em nome dos autores que os defensores do empréstimo pago falam. É em nome dessa ideia de «vender livros». O mais importante para um autor é que a sua obra seja conhecida e apreciada. Isso é o mais importante. Tudo o resto vem por acréscimo.

07 agosto 2007

Empréstimo ou aluguer? (5)

Continuando a desmontagem da argumentação da Sociedade Portuguesa de Autores.

Diz-nos esta que «defende, como sempre defendeu, que a promoção da cultura e do acesso à mesma não poderão nunca ser prosseguidas desprotegendo o autor e o Direito de Autor, sob pena de não serem alcançados os objectivos pretendidos mas o seu inverso. "Aliás" - destaca [João Laborinho Lúcio] - "velha é já a discussão entre a alegada bifurcação entre o direito de acesso à cultura e o direito à criação intelectual e respectiva protecção dos autores e dos seus direitos, dois direitos estribados na lei fundamental. Parece-nos, contudo, que esta bifurcação é aparente, pois que ambos os direitos só podem conduzir a um mesmo fim".»

Ora não podia o Dr. João Laborinho Lúcio ter mais razão! Mas, como jurista que é, o Dr. João Laborinho Lúcio deveria dominar melhor a retórica: usar argumento alheio em favor próprio exige habilidade. Pois que outra coisa coisa têm os bibliotecários dito e gritado aos quatro ventos: o acesso livre e gratuito à informação não prejudica - antes protege - os direitos dos autores?

Mais diz o Dr. João Laborinho Lúcio - citando Carlos Alberto Villalba, da OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) - "A criação não procede do nada, o criador, em especial o criador de obras literárias e artísticas, tem pelo mesmo acto da criação uma incoercível necessidade de que a sua obra seja difundida e conhecida."

Ora abóbora!!! E o que fazem as bibliotecas públicas? Escondem os livros? Ou fazem publicidade gratuita (que não é gratuita, todos nós a pagamos) aos autores, promovendo-os e às suas obras, chamando-os para palestras e conferências, colocando os seus livros mais recentes nos escaparates, promovendo clubes de leitura?
Será que o Dr. João Laborinho Lúcio alguma vez entrou numa biblioteca pública? Pronto, nos últimos trinta anos?

E o que fazem as bibliotecas públicas levando os livros, de bibliomóvel, às mais reconditas aldeias onde leitores de todas as idades e níveis de instrução têm acesso a obras que, de outra forma, nem saberiam que existem?

Quantos livros são comprados por utilizadores de bibliotecas públicas porque leram, gostaram e querem levá-los para casa?

E o que acha a SPA de começar a pagar às bibliotecas públicas a publicidade que fazem dos seus autores? Tal como acontece, aliás, nas grandes superfícies, nas livrarias... eles sabem tão bem como eu que o livrinho em destaque na montra paga-se. A promoçãozinha no hipermercado paga-se. O mundo da edição é um negócio. E as bibliotecas, que contribuem com elevados custos para a promoção deste negócio, não vêem um cêntimo. E ainda querem que paguem?!?

O que acha a SPA de pagar a carrinha que percorre montes e vales, carregada de livros, a parar nas aldeias e a promover os seus sócios? Quem é que paga o gasóleo? Quando a suspensão se avaria, quem é que paga o arranjo?

E o que dizer das bibliotecas que adoptam para seu nome o nome de um autor ainda vivo? Também deverão pagar direitos por usar esse nome? Ou isso já sabe bem, já soa a honraria?

Pergunta ainda a SPA «em que medida é que os autores ficaram lesados por não terem visto ao longo de anos o seu trabalho criativo devidamente remunerado por força da publicação de uma norma legal em clara violação de outra norma comunitária, e de que forma poderão ver esses seus eventuais danos devidamente ressarcidos"?»

Pois eu respondo a essa pergunta com outra : «em que medida é que os autores foram beneficiados por terem visto ao longo dos anos o seu trabalho criativo promovido até à exaustão pelo trabalho dos bibliotecários por força de uma tradição centenária - sim, que as bibliotecas públicas não nasceram com o DL 332/97 - e de que forma deverão compensar as mesmas bibliotecas pelos custos imensos que esse trabalho implica?»

Responda-me a SPA a esta que eu respondo à outra.

Voltarei ao assunto.

06 agosto 2007

Empréstimo ou aluguer (4)

Diz-nos a Sociedade Portuguesa de Autores que o Tribunal de Justiça Europeu considerou que o Estado português, ao isentar do pagamento da remuneração devida aos autores, a generalidade das instituições que entre nós emprestam livros e outras obras protegidas, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força de tal directiva.

Ora bem, ponto de ordem à mesa.

Em meu modesto entender, toda esta questão enferma de um erro de base que é o seguinte: em ponto algum da legislação portuguesa são isentadas todas as instituições que entre nós emprestam livros e outras obras protegidas. Afirmá-lo é um erro grosseiro e, naturalmente, uma extrapolação abusiva.

O que o n.º 3 do artigo 6º do DL 332/97 diz é que «O disposto neste artigo não se aplica às bibliotecas públicas, escolares, universitárias, museus, arquivos públicos, fundações públicas e instituições privadas sem fins lucrativos».

Isto significa que todas as empresas que desenvolvem investigação científica e tecnológica - como a indústria farmacêutica e dermocosmética, a indústria automóvel, a indústria da construção, etc. - e que têm, naturalmente, centros de documentação - não estão abrangidas por esta isenção.
Os escritórios de advogados que emprestam livros aos seus colaboradores não estão abrangidos pela isenção.
Também as grandes empresas que dispõem de infraestruturas de apoio ao lazer dos seus funcionários - ginásio, creche, piscina, biblioteca - não estão abrangidas pela isenção.
Se um café organizar uma tertúlia cultural e emprestar livros ou filmes aos seus clientes, não está abrangido pela isenção.
Os hotéis que têm biblioteca e emprestam livros ou filmes aos seus hóspedes, não estão abrangidos pela isenção.
Uma livraria que tenha uma secção de livros usados ou em mau estado e que faça empréstimo aos seus clientes, não está abrangida pela isenção.
Os hospitais que têm biblioteca e fazem empréstimo aos seus pacientes internados, não estão abrangidos pela isenção.
Os lares e residências para a 3ª idade que têm biblioteca e fazem empréstimo aos seus residentes não estão abrangidos pela isenção.
Os SPA's, centros de férias, parques de campismo e outros espaços de lazer que têm biblioteca para os seus clientes, não estão abrangidos pela isenção.
Os visitantes da BdJ lembrar-se-ão, certamente, de outros casos.

Ou seja, todas as organizações e instituições privadas, com fins lucrativos, que têm uma biblioteca e praticam o empréstimo de livros, filmes e discos como parte integrante dos serviços prestados aos seus colaboradores e clientes já têm, há 10 anos, o dever legal de pagar a remuneração aos autores.

Se não cumprem é outra questão...

Como fazê-las cumprir quando o trabalho é "caseiro", não têm um sistema de controlo de empréstimos, nem base de dados, nem pessoal especializado, também é outra questão...

Se estes casos são uma minoria? Não sei. Mas também ninguém sabe porque, pura e simplesmente, não existe qualquer levantamento destas situações. Ninguém sabe, ao certo, quantas pequenas bibliotecas e centros de documentação de entidades privadas existem espalhados pelo país. Por isso, insisto, é um erro grosseiro e uma extrapolação abusiva afirmar que o Estado isentou do pagamento da remuneração devida aos autores a generalidade das instituições que entre nós emprestam livros e outras obras protegidas.

Neste ponto, a BAD caíu que nem um patinho. Em vez de rebater a interpretação do TJE, tomou-a como certa e vem agora propôr ao Estado português que vá apresentar-se à Comissão Europeia, de rabinho entre as pernas e corda ao pescoço, dizendo mea culpa e suplicando de cabeça baixa um favor de país de analfabetos o que deveria exigir, de cabeça levantada, como um direito de país civilizado.

Enquanto não nos dermos ao respeito, ninguém nos respeitará.

Voltarei ao assunto.

01 agosto 2007

Empréstimo ou aluguer? (3)

Como parece que os lesados pela não cobrança de taxas de empréstimo nas bibliotecas são os autores - pelo menos é essa ideia que faz passar a Sociedade Portuguesa de Autores - eu perguntei-me qual seria a opinião dos ditos autores em relação a isso. E eis o que que encontrei aqui (os destaques são meus):

«Escritores questionam taxa às bibliotecas
Daniel Rocha/PÚBLICO

«A não aplicação da taxa sobre os empréstimos nas bibliotecas públicas motivou, em Janeiro passado, um puxão de orelhas da Comissão Europeia a Portugal.
«Em vésperas do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, que se celebra sexta-feira, a possibilidade de as obras requisitadas pelos leitores passarem a ser taxadas às bibliotecas não recolhe a simpatia dos escritores.
«O poeta José Manuel Mendes diz-se "favorável a todos os mecanismos de composição de interesses que tendam a assegurar os direitos dos autores", mas afirma ser inadequada "a cobrança de qualquer montante tal como se acha preconizado". A não aplicação da taxa sobre os empréstimos nas bibliotecas públicas - que faz parte de uma directiva europeia de 1992 que nunca foi inteiramente cumprida - motivou, em Janeiro passado, um "puxão de orelhas" da Comissão Europeia a Portugal. A taxa visa assegurar parte dos direitos autorais e tem em conta a possibilidade de, em alguns países, os empréstimos lesarem as vendas de livros, mas a hipótese da sua aplicação motivou já uma petição da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas. Em declarações à Lusa "apenas a título individual, enquanto autor", como fez questão de sublinhar, o presidente da Associação Portuguesa de Escritores justificou ainda a sua discordância "tendo em conta os ainda graves índices de iletrismo na sociedade portuguesa e as dificuldades de múltipla ordem que as bibliotecas enfrentam". Assim, e embora reconheça que os direitos dos autores são muita vezes ignorados, "com os prejuízos que daí resulta para quem escreve", o autor de "O Despir da Névoa" (romance) ou "Presságios do Sul" (poesia) mostrou-se contra a "adopção de práticas que constituam obstáculo a um forte incremento da leitura". A obstrução no acesso dos leitores aos livros é também motivo de preocupação para o escritor Casimiro de Brito, para quem a questão da taxa às bibliotecas "é uma matéria sensível, uma vez que o direito de autor não pode ser entendido de forma exclusivamente matemática". O presidente do Pen Clube Português afirmou à Lusa que "não está incorrecta a ideia dos escritores receberem uma percentagem sobre os livros emprestados nas instituições públicas", mas destacou que "uma taxa, a existir, deve ter um valor simbólico".
«Autor de "Subitamente o Silêncio" (poesia) ou "Imitação do Prazer" (romance), Casimiro de Brito ressalvou ainda que o empréstimo dos títulos através das bibliotecas "conduz a um ganho indirecto para os autores, que assim divulgam as obras e ganham leitores". Dando como exemplo a Suécia - "onde as bibliotecas, por cada quatro ou cinco requisições de um livro, compram outro exemplar igual" - o poeta e ficcionista acredita que, em Portugal, "existe mais o hábito de comprar as obras do que de as requisitar para ler", motivo pelo qual o objectivo principal da taxa não tem razão de ser. Casimiro de Brito revelou também que, para si, o mais importante é "dar vida aos livros", pelo que tem o hábito de deixar obras "esquecidas" em locais públicos há mais de 20 anos, o que o torna, sem querer, num precursor do movimento de bookcrossing. O bookcrossing, um movimento internacional que conta já com cerca de 3000 membros em Portugal, pode ser entendido como uma espécie de biblioteca virtual e tem por objectivo democratizar o acesso aos bens culturais e encorajar a leitura. Rui Viegas, bookcrosser e dinamizador de iniciativas no Dia do Livro e dos Direitos de Autor, afirmou à Lusa não acreditar que a partilha de livros entre os elementos do movimento prejudique os direitos de autor. "Se um bookcrosser gostar de um livro, ele pode vir a comprar essa obra e até, muito provavelmente, outras do mesmo autor", declarou, acrescentando que "é necessário assegurar os direitos de autor, mas também é importante que as pessoas leiam". Mostrando-se contra a aplicação da taxa sobre o empréstimo público, Rui Viegas considera que a medida "inverte a lógica de facilitar o acesso de todos aos bens culturais", pois, ao afectar as verbas das bibliotecas, a medida lesa também os utentes. A possibilidade de aplicação da directiva comunitária originou o texto de contestação "Em defesa do empréstimo público nas bibliotecas portuguesas!", da Associação de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, que conta actualmente com cerca de 5000 assinaturas em www.petitiononline.com/PetBAD/petition.html. "Tendo em conta que a taxa - que será paga pelas bibliotecas e não pelos utilizadores - empobrece estas entidades, a medida acaba por afectar a capacidade de investimento em novos títulos e, em consequência, a divulgação dos autores", sublinhou à Lusa António José de Pina Falcão, da direcção da BAD, como é conhecida a Associação. A Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas mostra-se preocupada porque entende que, tendo de pagar a taxa sobre os empréstimos, "decresce a verba que é aplicada na actualização do espólio de livros mas também na aquisição de material audiovisual e na promoção de iniciativas culturais ao longo do ano". Além de Portugal, também a Espanha, França, Itália, Luxemburgo e Irlanda foram alertadas em Janeiro pela Comissão Europeia para a aplicação integral da norma relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual.»
(Público, 21-04-2004)

27 julho 2007

Empréstimo ou aluguer? (2)

Quem me conhece, mesmo que só aqui deste vosso espaço, sabe que eu sou uma rapariga imparcial. Demonstrei-o suficientemente, na altura do referendo ao aborto, apresentando argumentos de um e outro lado, apesar de eu própria ter uma posição sobre o assunto.
Faço o mesmo em relação à questão do empréstimo pago nas bibliotecas. Por essa razão transcrevo aqui, integralmente, sem correcções à pontuação e sem qualquer censura, o artigo publicado no site da Sociedade Portuguesa de Autores. Os destaques são os originais.
Espero que a SPA não me venha cobrar direitos...

«Transposição Incorrecta de Directiva Comunitária
«O Tribunal de Justiça Europeu (TJE), por acórdão de 6 de Julho último, decidiu que a República Portuguesa transpôs incorrectamente para a ordem jurídica nacional a directiva comunitária relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor. Isto é: o TJE considerou que o Estado português, ao isentar, do pagamento da remuneração devida aos autores, a generalidade das instituições que entre nós emprestam livros e outras obras protegidas, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força de tal directiva.

«"Uma isenção que isenta todos não é uma isenção, mas a anulação da obrigação subjacente" - diz, numa conversa com a "Autores", o colaborador da SPA na área jurídica Dr. João Laborinho Lúcio, que tem vindo a acompanhar o desenvolvimento desta questão.

«As consequências reais da decisão do TJE em breve serão conhecidas - mas a SPA sublinha que atempada e repetidamente tomou posição sobre esta questão, protestando contra a forma, canhestra e com anos de atraso, como o Estado português transpôs tal directiva, prejudicando gravemente os autores nacionais. E tinha razão, como agora se vê. Falta ver como serão os autores portugueses ressarcidos.

«Legisladores autistas. "A transposição da directiva em causa foi feita através do decreto-lei 332/97, de 27 de Novembro e importava, portanto, que o legislador nacional tivesse seguido as directrizes emanadas do dispositivo legal comunitário, sem prejuízo da liberdade que a mesma lhe confere, mas dentro dos seus limites" - começou por destacar João Laborinho Lúcio.

«Contudo, não foi isso o que aconteceu: "A forma como o legislador nacional ampliou a exclusão de não remunerar o direito exclusivo de comodato não a determinadas categorias de estabelecimentos, como impunha a directriz, mas a todos os estabelecimentos que promovem o comodato público é, em nosso entender, claramente violadora dos direitos dos autores porquanto estes, em circunstância alguma, vêem a utilização pelo comodato do seu trabalho criativo remunerada" - acrescentou JLL.

«Mais grave ainda: o legislador nacional, apesar de insistentemente alertado pela SPA, fez ouvidos de mercador. João Laborinho Lúcio explica como: "O governo defendeu a abrangência do conjunto de estabelecimentos beneficiários da isenção com o fundamento de que o estado de desenvolvimento cultural do país e a necessidade de incentivar a leitura aconselhavam a usar, de uma forma extensiva, a possibilidade de aplicação da isenção. E aí o governo viu a sua posição fortemente apoiada quer pelo Instituto Português do Livro e da Biblioteca quer pela Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas".

«Ora - diz JLL - "a SPA sempre entendeu que o governo tinha feito um uso excessivo da faculdade constante do artigo 5º, nº 3 da Directiva, ao estender o benefício da isenção a um número tão alargado de estabelecimentos. Dificilmente se encontra em Portugal uma entidade que proceda ao comodato de originais ou cópias de obras intelectuais protegidas que não se reconduza às categorias contempladas na lei".
«A SPA sempre assim entendeu e alertou em tempo útil, repetidas vezes, quem de direito. Mas em vão: o pior surdo é o que não quer ouvir.

«Argumento ultrapassado. Recorda o jurista: "Não deixando de ser sensível aos argumentos adiantados pelo governo, a SPA defende, como sempre defendeu, que a promoção da cultura e do acesso à mesma não poderão nunca ser prosseguidas desprotegendo o autor e o Direito de Autor, sob pena de não serem alcançados os objectivos pretendidos mas o seu inverso. "Aliás" - destaca - "velha é já a discussão entre a alegada bifurcação entre o direito de acesso à cultura e o direito à criação intelectual e respectiva protecção dos autores e dos seus direitos, dois direitos estribados na lei fundamental. Parece-nos, contudo, que esta bifurcação é aparente, pois que ambos os direitos só podem conduzir a um mesmo fim".

«Em abono desta tese, João Laborinho Lúcio diz depois: "Nunca é demais ressaltar um dos pensamentos saídos do II Congresso Ibero-Americano de Direito de Autor e Direitos Conexos de Lisboa (1994), a ele trazido por Carlos Alberto Villalba, um perito da OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual) segundo o qual a participação significativa na vida cultural e a utilização dos benefícios do progresso científico só são possíveis se existir uma protecção efectiva dos direitos de autor e uma conservação adequada da herança cultural. Na realidade, os primeiros necessitados de aceder às obras intelectuais são os criadores já que toda a criação procede de uma ordem cultural onde existe intercomunicação. A criação não procede do nada, o criador, em especial o criador de obras literárias e artísticas, tem pelo mesmo acto da criação uma incoercível necessidade de que a sua obra seja difundida e conhecida.

«Trata-se, portanto, de um argumento ultrapassado e desprovido de sentido, o da alegada dicotomia entre o direito de acesso à cultura e o direito de autor".

«Um pouco de história... Em resultado necessário e directo da forma como o Estado português transpôs a directiva comunitária n.º 92/100/CEE, a Comissão das Comunidades Europeias intentou contra a República Portuguesa o processo a que veio a ser dado o número C-53/05.

«Em síntese, a Comissão alegou que o artigo 5.°, n.°3 da directiva permite que os Estados-membros isentem "determinadas categorias" de estabelecimentos do pagamento da remuneração normalmente garantida pelo artigo 5.°, n.°1, em derrogação dos direitos exclusivos de comodato conferidos pelo artigo 1.°.
«No entanto, o artigo 6.°, n.°3, do Decreto-Lei 332/97 isenta todas as bibliotecas públicas, escolares, universitárias, museus, arquivos públicos, fundações públicas e instituições privadas sem fins lucrativos. Por conseguinte, a derrogação abrange todos os serviços administrativos centrais do Estado, os organismos da Administração indirecta do Estado, como os institutos públicos e as associações públicas, todos os serviços e organismos da Administração Local, todas as pessoas colectivas de direito privado que desempenhem funções de natureza pública e até mesmo escolas e universidades privadas e instituições privadas sem fins lucrativos.

«Diz João Laborinho Lúcio: "Esta lista inclui todos os estabelecimentos que emprestam a título gratuito, portanto, todos os organismos que praticam o "comodato" nos termos do artigo 1.°, n.°3. Uma isenção que isenta todos não é uma isenção, mas a anulação da obrigação subjacente. Da transposição do artigo 5.° da directiva efectuada pela República Portuguesa resulta que nenhum estabelecimento que pratique o comodato público está obrigado ao pagamento da remuneração prevista no artigo 5.°, n.°1. Isto viola o direito de comodato exclusivo e a protecção que lhe confere a directiva".

«No âmbito deste processo, e depois das Conclusões da Advogada Geral Eleonor Sharpston apresentadas em 4 de Abril de 2006 que foi de opinião de que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 5.º, conjugado com o artigo 1.º, da directiva, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção), por acórdão de 6 de Julho de 2006, decidiu que a República Portuguesa, ao isentar todas as categorias de estabelecimentos que praticam o comodato público da obrigação de remuneração devida aos autores a título de comodato, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.º e 5.º da Directiva 92/100/CEE do Conselho, de 19 de Novembro de 1992, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual.

«... e várias perguntas. Neste contexto, no ar ficam várias e pertinentes interrogações, como aponta João Laborinho Lúcio: "Sabendo-se de antemão, e não obstante a decisão ora proferida pelo Tribunal de Justiça, que o art. 5.°, n.°3 da directiva foi incluído para responder ao desejo de Estados-membros que pretendiam conservar a faculdade de isentar apenas as bibliotecas dos estabelecimentos de ensino e as bibliotecas públicas da obrigação de pagamento do direito de comodato público, pergunta-se se a opção legislativa nacional que não permite efectuar uma distinção válida entre as categorias de estabelecimentos não conduz, ao contrário do que se pretendia, à obrigação de impor a todos os estabelecimentos em causa o pagamento da remuneração em questão.

«Seja de que forma for, e responda-se como se responder à questão anterior, permitimo-nos levantar a questão de saber em que medida é que os autores ficaram lesados por não terem visto ao longo de anos o seu trabalho criativo devidamente remunerado por força da publicação de uma norma legal em clara violação de outra norma comunitária, e de que forma poderão ver esses seus eventuais danos devidamente ressarcidos".»

25 julho 2007

Empréstimo ou aluguer?

Não posso ficar indiferente a uma (mais uma) aberração imposta pela União Europeia. A história já é antiga e vou contá-la com as palavras da Luísa Alvim (os destaques são meus):

«A Comunidade Europeia aprovou, em 1992, uma directiva relativa ao direito de comodato e a certos direitos conexos de autor em matéria de propriedade intelectual, passando as bibliotecas, museus, arquivos e outras instituições privadas sem fins lucrativos a ter que pagar pelo empréstimo público dos seus documentos abrangidos por estes direitos de autor.
«Depois de algumas intervenções em defesa pelo não pagamento, e lembro a famosa petição portuguesa em favor do empréstimo público gratuito nas bibliotecas, patrocinada pela BAD (Associação de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas), com 20.000 assinaturas em 2004, a situação é de condenação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia sobre Portugal que isentou todas as categorias de estabelecimentos que praticam o comodato público da obrigação de pagar aos autores.
«Esta é a grande questão. Actualmente, a Assembleia da República terá que apresentar uma proposta de lei diminuindo o número de isenções ao pagamento da remuneração pelo empréstimo público de documentos.
«Entendo que esta normativa europeia e o decreto-lei vão contra todos os princípios que os profissionais da informação defendem e lutam, desde sempre, em apoiar a disponibilização de documentos que possibilitem a educação individual, a autoformação, a educação formal, o oferecer possibilidades de um criativo desenvolvimento pessoal, o estimular a imaginação, o promover o conhecimento e o apreço pelas artes e inovações científicas, o facilitar o acesso às diferentes formas de expressão cultural, o fomentar o diálogo inter-cultural, a assegurar o acesso dos cidadãos a todos os tipos de informação à comunidade, nas instituições públicas e privadas onde trabalham de forma gratuita, explícitos no Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas, no Código de Ética.
«Princípios defendidos internacionalmente pela IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions) e pela EBLIDA (European Association of Library Information and Documentation Associations).
«A missão das bibliotecas sempre foi garantir aos cidadãos o acesso livre ao conhecimento, à cultura e à informação. O papel das bibliotecas públicas, escolares, universitárias, e outras, em Portugal, nos últimos anos é inquestionável no exercício das suas missões sociais e culturais.
«A BAD, apesar de defender estes princípios, optou, e muito bem, por apresentar uma proposta de alteração da lei, à Comissão da Assembleia da República, no sentido de salvaguardar algumas questões, como o não pagamento de direitos de autor pela consulta presencial de documentos nas bibliotecas, o mesmo se passando com o empréstimo inter-bibliotecas e a transmissão de obras em rede.
«Relativamente ao empréstimo de documentos, que seja pago não pelo utilizador/cidadão mas pelos organismos que tutelam as bibliotecas (Ministério da Cultura/Câmaras?), e que este pagamento não se repercuta nos orçamentos das bibliotecas.
«Ainda não sabemos como a lei vai figurar em Portugal, mas sabemos que já não é possível que a utilização de documentos seja disponibilizada gratuitamente nas
bibliotecas
. É necessário continuar a falar sobre este assunto, e de outras questões associadas, como o estabelecimento dos critérios para a fixação da remuneração a pagar, etc.
«O papel dos profissionais da informação, e das associações, terá que ser de sensibilizar a opinião pública para a "indiscutível" defesa do direito à informação gratuita disponibilizada pelas instituições públicas, na nossa dita "sociedade democrática".

«1. Solicito que reenviem esta mensagem, manifestem-se e discutam nos blogues, linkem os posts sobre este assunto entre blogues, escrevam nos jornais e em artigos nas redes sociais e fóruns, pelo menos não fiquemos calados quando nos pedirem alguns cêntimos pela consulta de um livro que precisamos para estudar ou para os nossos filhos aprenderem, numa qualquer biblioteca.
«2. Aconselhemos os nossos amigos - Autores - (de livros, música, bd, cinema, etc.) que disponibilizem os seus conteúdos em livre acesso, com etiquetas de Creative Commons, GNU License (documentos-software), copyleft, etc. e prescindam dos direitos de autor, sempre que as suas obras sejam consultadas/emprestadas em bibliotecas, arquivos, centros de documentação e museus.»

Agradeço à Luisa Alvim ter-me enviado esta mensagem.

Também o Adalberto deu a sua valiosa contribuição para este debate, esclarecendo-nos acerca das causas mais profundas e obscuras de tamanha aberração.

Claro, como directiva comunitária que é, não nos afecta só a nós. Também em Espanha e Itália os bibliotecários se têm batido contra o empréstimo pago. Em Itália há mesmo uma petição de autores contra esta legislação.

Quanto a mim, voltarei ao assunto. Na biblioteca de Jacinto, claro, o empréstimo é e continuará ser sempre gratuito. Jacintus Galeanus dixit.

04 maio 2007

Web 2.0 e a Ciência da Informação

«O III Encontro do curso de Ciências e Tecnologias da Documentação e Informação (CTDI) da ESEIG (Vila do Conde), subordinado ao tema "Web 2.0 e a Ciência da Informação", pretende dar continuidade a uma iniciativa organizada, pela primeira vez, em 2005, tendo, então, assumido uma periodicidade anual.

«O êxito das edições anteriores deste evento reforçou a vontade de prosseguirmos com o objectivo então traçado: a partilha de saberes e experiências diversificadas, no âmbito das Ciências e Tecnologias da Informação, de modo a proporcionar o debate, a difusão e o desenvolvimento do conhecimento na matéria.

«Os Encontros têm como público alvo os actuais e futuros Profissionais da Informação bem como gestores de empresas.

«O Tema deste III Encontro, Web 2.0, é encarado por nós como verdadeiramente actual e pertinente pois vem realçar ainda mais a importância da Ciência da Informação, neste mundo em que o cidadão comum, ao invés de mero consumidor, se torna actor não só na produção de informação, como na sua distribuição e relevância, por virtude de novas aplicações e da, cada vez maior, ubiquidade de mecanismos e locais de acesso. Assim, qualquer cidadão pode ser também produtor com uma facilidade até agora nunca vista.

«A emergência do paradigma do "utilizador como conteúdo" é apenas uma das revoluções criadas pela adopção destas ferramentas a nível global: muitos outros novos desafios se colocam aos Profissionais da Informação, seja na projecção dos seus serviços na blogosfera, seja na avaliação da qualidade da informação agora disponível, seja na sempre crescente necessidade de dotar o cidadão das competências necessárias para aferir a relevância, autoridade e qualidade da informação recuperada.

«Por outro lado, as novas esferas de comunicação humana, desde a blogosfera aos mundos virtuais, passando pelas comunidades online, apresentam desafios aos Profissionais da Informação que, apesar de estarem perfeitamente contemplados nos referenciais de competências com que foram dotados no seu percurso académico, urge revisitar: Qual o nosso papel na web 2.0? Como acrescentar-lhe valor? Como expressar a nossa relevância? Como avaliar o valor? Como tornar os nossos serviços relevantes para os utilizadores nativos digitais? Como adaptar a docência da Ciência da Informação e mesmo a produção científica Web 2.0?

«Se não para responder a tudo isto, pelo menos para fazer novas perguntas, convidamos pois, todos os interessados, a estarem connosco no dia 29 de Maio.

«Para o curso de CTDI, Web 2.0 significa "a Web somos nós!".»

Quanto à bibliotecária da Biblioteca de Jacinto - Moi - vai ter uma modesta (mas divertida, espero) participação. Ainda não escrevi nada (se calhar vai de improviso) mas vou falar sobre a minha experiência n'A biblioteca de Jacinto, como o facto de ser bibliotecária profissional influencia a minha atitude enquanto blogger e também da minha participação em redes sociais (Bibliotecários 2.0, Librarians, Library 2.0) e da rede Paper Music, que criei para pôr em contacto bibliotecários e arquivistas de música em todo o mundo bem como todas aquelas pessoas que, não sendo bibliotecários nem arquivistas profissionais, trabalham com documentação e com património musical e têm experièncias a trocar.

12 abril 2007

202 ou A biblioteca de Jacinto II

«Oh, a invasão dos livros no 202! Solitários, aos pares, em pacotes, dentro de caixas, franzinos, gordos e repletos de autoridade, envoltos em plebeia capa amarela ou revestidos de marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente, invadiam por todas as largas portas a Biblioteca, onde se estiravam sobre o tapete, se repimpavam nas cadeiras macias, se entronizavam em cima das mesas robustas, e sobretudo trepavam contra as janelas, em sofregas pilhas, como se, sufocados pela sua própria multidão, procurassem com ânsia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns vidros mais altos restavam descobertos, sem tapume de livros, perenemente se adensava um pensativo crepúsculo de Outono enquanto fóra Junho refulgia. A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina sem que de trás surgisse, hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!
«Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que, no meu quarto, moido e mole de um passeio a Versalhes, com as pálpebras poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito, praguejando, um pavoroso Dicionário de Indústria em trinta e sete volume! Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facúndia humana... E já me estirara, adormecia, quando topei, quase parti a preciosa rótula do joelho, contra a lombada de um tomo que velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo afrontoso - que entornou o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci - porque os meus pés, a que não sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim que o luar branqueava, depois na Avenida dos Campos Elisios, povoada e ruidosa como numa festa cívica. E, oh portento! Todas as casas aos lados eram construídas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com títulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia, avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna em flácidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de Exegese e Crítica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para além das nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Eles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos por espessas crostas de livros, de onde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um raiozinho de luz sufocada e ansiada. E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o Paraíso - porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos - o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a mão super-forte que o Mundo criara - e o Criador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro coruscante. O livro era brochado, de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.»
(QUEIRÓS, Eça de - A cidade e as serras)


A biblioteca de Jacinto (I)

27 dezembro 2006

Conto de Natal à minha maneira

Com um agradecimento à Paula Azevedo Macedo, futura bibliotecária, que divulgou este pequeno conto na lista "Bibliotecários". Um grande futuro para ela!

Conto de Natal à minha maneira / Ignácio de Loyola Brandão. In: O Estado de São Paulo (22/12/2006)

«Liliani viu quando ele entrou, foi até os fundos, fingiu olhar os livros, virou-se para ela, desviou o olhar, apanhou uma revista e folheou, a contemplá-la com o rabo dos olhos. Disfarça mal, ela pensou. Era a quarta vez na semana que ele surgia na hora do almoço, momento silencioso na biblioteca, os alunos saíam das classes e no restaurante encontravam pais, amigos, professores ou iam jogar alguma coisa, namorar. Ela se aproximou sorrateiramente, gostava dessa palavra sorrateira.
«- Então?
«Ele se assustou, como se tivesse sido pego em uma transgressão. Devia ter 18 anos, conservava o desajeitamento da adolescência.
«- Quer ajuda?
«- Nem sei o que quero.
«- Quer um livro, imagino. Por isso está na biblioteca. Ou não?
«Quando tinha fome, como agora, tornava-se irônica.
«- Quero uns livros para ler nos feriados de Natal.
«- Feriados? No Natal estaremos todos em férias.
«- Posso levar alguns livros para ler durante as férias?
«- Gosta de ler?
«- Gosto. E você, gosta de quem lê?
«- Sou bibliotecária, livros são minha paixão. Um dia ainda abro uma livraria.
«- Você admira quem lê?
«Liliani não entendeu bem o porquê da pergunta. Deixou passar batido. Seria aluno do colégio? Por que vinha com tanta freqüência, fingia que olhava os livros e ia embora?
«- O que gostaria que eu lesse?
«- Ler é uma decisão pessoal.
«- É...
«Ele parecia sem assunto e, ao mesmo tempo, dava a sensação de que estava ansioso para falar, a boca tremia, os lábios secos. Nesse momento um garotão colocou a cabeça na porta, gritou:
«- Pronta, Liliani? Vamos almoçar?
«- Num minuto, Bruno! Estou atendendo uma pessoa! Vai na frente!
«Ela podia jurar que uma expressão de desapontamento ensombreou o rosto do garoto, suas mãos tremeram, ele umedeceu os lábios com a língua.
«- Teu namorado?
«Em um segundo, Liliani compreendeu, as mulheres são intuitivas, rápidas. Comoveu-se. Riu, mesmo considerando que a pergunta invadia seu espaço. Quando ela ria, seu corpo inteiro acompanhava, como se fosse uma explosão, seus olhos ficavam generosos.
«- Não tenho namorado!
«- É casada?
«- Não, sou solteira!
«A resposta estilhaçou toda a tensão que sufocava o corpo dele, o jovem respirou, o ar veio de dentro com força, como se mil mãos tivessem feito uma massagem com pedras quentes.
«- Não quer voltar depois do almoço? Preciso comer e reabrir a biblioteca à tarde. Ou, melhor, quer almoçar comigo?
«Surpreendido, ele emudeceu de alegria e de temor. Liliani estava achando divertido, queria estender a situação, ver aonde chegava. Percebia que ele estava travado, é sempre assim quando se quer alguém. As mulheres conhecem os mecanismos do coração, os meandros misteriosos da alma, dizia o professor de lógica. Outro amigo, por quem ela tinha sido apaixonada, costumava definir: 'Teus olhos têm uma dose enorme de loucura, deixam as pessoas inquietas, são uma aventura.' O último namorado vivia dizendo: 'Quando você ri, o mundo vira de ponta cabeça.' E ela, com a ironia que a marcava, e às vezes prejudicava, porque os homens são crianças que não sabem brincar com a vida, se leva muito a sério: 'O mundo vira de ponta cabeça? Conte a verdade? Quem vira de ponta cabeça é você.' Lembrou-se também do namorado que perdera porque tinha deixado de usar sandálias de salto agulha, ele a queria o dia inteiro com aquele salto que quase quebrava a espinha, ainda que torneassem sensualmente suas pernas. Liliani se sabia bonita, insinuante, conhecia o fascínio que despertava a cor de sua pele, de um moreno que dava a sensação de ela estar saindo da praia.
«- Não posso almoçar, agora. Não posso, me desculpe, disse ele.
«- Almoçamos outro dia.
«- Como você se chama? Liliana?
«- Liliani. O i no lugar do a. Meu pai quis assim, para ficar um nome único, diferente.
«- Liliani é bonito, tem um ritmo. Meu professor de português diz que cada pessoa faz o seu próprio nome. O que significa Liliani?
«- O mesmo que Liliana. Ou Liliam. Meu pai disse que significa lírio, e lírio é pureza, inocência... O lírio está em algumas das pinturas mais famosas da Antiguidade. Nas Anunciações de Leonardo da Vinci, de Rafael e de Guido Reni. Anjos trazem lírios a Maria, mãe de Deus.
«Ele se espantou, admirou-a mais. Gostou. Como ela sabe coisas, pensou. Não percebeu que ela mudava o tom do sério ao gaiato, ainda que fosse verdade.
«- Lindo... lírio... inocência...
«- Mas não sou tão inocente assim, olhe lá!... Mas, decidiu o livro? Hoje é o último dia antes das férias, antes do Natal. Acho que você pode levar dois ou três, faço um cadastro, vou confiar em você. Estou boazinha esta semana.
«- Me diz uma coisa. Quem leu mais livros aqui?
«- Quem leu mais?
«- O campeão, o recordista.
«Tudo hoje são recordes, números, ela pensou.
«- Tem uma menina, a Mônica, que lê um livro por dia. Uma vez desconfiamos, fizemos testes, ela lê de verdade. Cabeça incrível.
«- Você admira essa mulher?
«- Claro. Uma pessoa assim tem outra cabeça.
«- Admira muito?
«- Vou dizer que sim. É alguém que tem onde se refugiar para fugir da mesmice, desta vida chata, rotineira, às vezes...
«- Puxa! Admira essa pessoa.
«- Tem gente que desde cedo mostra que ser vai diferenciada.
«- Se eu lesse muitos livros? Você me admiraria?
«- Claro que sim.
«- Quantos livros eu teria de ler?
«- Nunca pensei nisso.
«- Pois vou ler esta biblioteca inteira. Depois vou passar por todas as outras bibliotecas de São Paulo, do Brasil. Onde tiver livro, estarei lendo...
«Ele se encaminhou para a porta, voltou-se.
«- Por você vou ler 1 milhão de livros. Um bilhão. E aí você vai me admirar.
«Quase disse 'gostar de mim', se conteve, apenas pensou que ela veria quanto uma paixão move um homem.
«- Vou ler 1 trilhão de livros, vou ler todos os livros do mundo.
«Liliani fez um aceno de cabeça e pensou: tomando-se a média de 120 páginas por livro e imaginando que ele demore três minutos para ler uma página, lerá um livro a cada 360 minutos, ou seja seis horas. Seis trilhões de horas, calculando por baixo, significam 250 bilhões de dias. Mais ou menos uns 70 bilhões de anos. Acho que não vou esperar, concluiu. Estou com fome. E saiu para o almoço.»

02 outubro 2006

«A biblioteca é uma oficina sempre aberta»

«Não é conservar os livros, mas torná-los úteis, o fim das Bibliotecas. Estabelecimentos de ensino público destinados ao progresso da inteligência, à extensão da cultura científica; focos de intensa irradiação mental, quer na frequência da sua sede, quer na leitura domiciliária, ou na expansão das colecções móveis; instituições de objectivo pedagógico, actuando pela franca e ilimitada comunicação com o público; as Bibliotecas são sempre elemento de instrução, por mais que as suas colecções pareçam dever ser apenas alvo da avara contemplação dos bibliómanos, pois que, quanto maior for a importância das suas obras de génio, tanto maior será a acção emancipadora do pensamento, franqueando às novas gerações o caminho do progresso incessante, a conquista de mais felicidade e de mais justiça.
(...)
«O franco acesso à Biblioteca, a ampla leitura domiciliária, as colecções móveis, as salas para crianças, a leitura no caminho de ferro, nos hospitais e nas prisões (...) tem sido completamente posto à margem neste país.
(...)
«Serviram em Portugal as Bibliotecas para sequestrar o livro, defendendo o povo do pecado de saber, repelindo a criança e o operário, contrariando o estudioso, traíndo o princípio que manda reservar o volume raro, para impedir a leitura do livro emancipador, exercendo a censura sobre a requisição do leitor, anulando de facto o livro, como o fazia a Inquisição, cujo crime não era destruír pelo fogo o exemplar, mas impedir pelo fogo a sua leitura.
(...)
«Devem as Bibliotecas publicar listas de livros que possam pôr o cidadão ao corrente dos negócios públicos, habilitando-o a conhecer as leis eleitorais, as constituições, as reformas de instrução, os planos financeiros, tudo quanto é submetido ao seu exame pelas publicações oficiais, pela discussão do Parlamento e pelo programa dos candidatos ao mandato eleitoral.
(...)
«A Biblioteca é, pois, uma oficina sempre aberta.»

(D.R., Min. do Interior, Decreto de 18 de Março de 1911)

22 setembro 2006

A Internet não substitui as Bibliotecas : 10 razões

Muito interessantes, as 10 razões pelas quais a Internet não substitui as bibliotecas. Para ler em «O bibliotecário anarquista» http://bibliotecarioanarquista.blogspot.com/

19 setembro 2006

A biblioteca de Jacinto

«Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado - ou antes aquele que se munira da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal - existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano. A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao tecto de onde alternadamente, através de cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma - continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezassete!
«Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência - e mesmo da estupidez. E o único inconveniente deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o Corpo encontrava logo, para mal do Espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.»
(Queirós, Eça de - Civilização)