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02 outubro 2014

Os Maias

Fui ver a versão completa d'Os Maias, de João Botelho.

Os Maias - o romance - é uma obra prima e um dos (se não o) meu romance preferido de toda a literatura portuguesa. Ia com algum receio porque verter um romance em filme costuma dar mau resultado.

Optei por ver a versão integral - 3h05' - e foi uma agradável surpresa.
Gostei de alguns aspectos em particular:

O facto de o filme não se centrar na história de amor entre Carlos e Maria Eduarda. A opção fácil de reduzir Os Maias a um caso de amor incestuoso seria matar a obra.

A opção assumida por uma versão não realista. Gostei muito do recurso aos cenários. Introduziu um contraste (na minha opinião) interessantíssimo entre o duro e cru do realismo literário e o assumido irrealismo dos cenários e das tomadas de cena. Há um ambiente teatral (câmara estática, as personagens viradas para a câmara em vez de se virarem umas para as outras), um ritmo literário nos diálogos que, em conjugação com o excelente trabalho dos actores, cria um certo distanciamento por parte do espectador, um envolvimento contido com o drama.

A concentração nos pontos-chave do romance. Estão lá quase todas as cenas que esperamos encontrar. Eu sou daquelas pessoas que sabem falas de cor e completam mentalmente os diálogos, por isso agradou-me imenso ver o diálogo do reencontro inicial entre João da Ega e Carlos da Maia - com o famoso episódio da peste em Celorico -, a cena do Hotel Central, a preparação do baile de máscaras, etc. Até a cena de infância entre Carlos e Eusébiosinho vestido de anjo aparece durante o sonho de Afonso da Maia. Estão lá as nossas referências todas ou quase todas.

As personagens estão muito bem caracterizadas: João da Ega está magistral, João Perry É o Afonso da Maia (não acho possível fazer melhor, estamos a ver em carne e osso o Afonso da Maia que imaginamos), a Gouvarinho está muito bem, com «os seus cabelos ruivos, cor de brasa ás luzes, dum encrespado forte, como crestados da chama interna». Dâmaso Salcede correponde perfeitamente ao «mocinho imberbe, de olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento», com a sua pose ridícula e sabuja mas sem nunca caír no excesso da caricatura.

A única que não corresponde minimamente ao que imaginava é a Raquel Cohen. Não me refiro ao trabalho da actriz mas à figura descrita por Eça, cuja «maior beleza estava nos cabelos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ela deixava habilmente cair numa massa meia solta sobre as costas, como num desalinho de nudez».

A cena da revelação não tem a intensidade dramática que eu esperava. É difícil, porém, porque a tremenda descrição de Eça (é uma das cenas mais violentamente dramáticas que já li) baseia-se no que o João da Ega está a pensar enquanto se mantem aparentemente impassível perante o Guimarães.

Finalmente, a cena do incesto parece-me intensa e dramática. É aliás, a cena mais intensa do filme, a única onde há movimentos de câmara, efeitos de "chiaroscuro" quase pictóricos, para representar o conflito interior de Carlos.

Recomendo a versão completa. A mim não cansou nada, foram três horas de prazer que passaram rapidamente.

Parabéns ao João Botelho e a todos os actores pelo magnífico trabalho.