Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

18 abril 2007

Escravos e assalariados

Tenho lido algumas reacções ao Boletim económico da Primavera do Banco de Portugal, que propõe uma flexibilização do mercado de trabalho, acusando o Dr. Vítor Constâncio de pretender voltar à escravatura.
Não é justo nem sequer inteligente. Eu nada percebo de economia mas não é preciso ser entendido para perceber isto: a escravatura não é rentável. Repare-se: um escravo tem de ser comprado. A compra de um escravo implica um investimento inicial que, em alguns casos, pode até ser bastante elevado, já que o vendedor do escravo procurará subir o preço o mais possível. Por outro lado, o escravo é vendido por terceiros, não se vai oferecer ao seu "patrão", é escravo contra vontade e não quer continuar nessa situação. Está, pois, de má vontade, à partida. Entretanto, uma vez comprado, há que mantê-lo vivo e saudável, para que ele trabalhe. Se o escravo adoecer ou morrer antes de o investimento inicial estar amortizado - com trabalho - ou se contraír alguma doença, o escravo resulta em prejuízo. As probabilidades de o escravo adoecer ou morrer, por seu lado, são inversamente proporcionais aos cuidados que lhe forem prestados, os quais, por sua vez, também implicam custos. Isso implica um investimento posterior e continuado a alimentá-lo, vesti-lo, dar-lhe condições de habitação salubre (ele não pode adoecer, lembram-se?) e vaciná-lo.

Agora, vejamos a situação de um assalariado, num sistema de total liberalização do emprego. Logo à partida, ressalta uma diferença fundamental: ao contrário do escravo, o assalariado vai à procura de emprego. É o candidato ao trabalho que se dirige ao potencial patrão, não é patrão que vai ao mercado comprá-lo. O assalariado quer o emprego. Por isso, não pode regatear o seu salário, como o faz o vendedor de escravos. Ao contrário do escravo, que quererá libertar-se do seu estado, o assalariado quererá mantê-lo. Por outro lado, o assalariado não implica qualquer investimento inicial. Se um patrão contratar um assalariado e, no dia seguinte, o assalariado adoecer, isso não tem custos para o patrão. Se o assalariado morrer de fome, seja ao fim de um dia, seja ao fim de um ano, isso não tem custos para o patrão. Se o assalariado adoecer por falta de condições de habitação ou por falta de cuidados de saúde, isso não tem custos para o patrão. O patrão não precisa de fazer nada para manter o seu assalariado vivo e saudável, logo, além de não haver investimento inicial, também o investimento durante a vigência da relação de trabalho é menor do que no caso de um escravo.

A escravatura e o capitalismo não se dão nem nunca se deram bem. Por alguma razão a decadência da escravatura acompanhou a ascensão do capitalismo. Por alguma razão a Revolução Industrial, com o desemprego que a acompanhou, não promoveu a escravatura mas o trabalho assalariado. Só o drama do desemprego e o fantasma da fome poderia levar, durante o Século XIX (e hoje, nos paraísos da «deslocalização») milhares de seres humanos a fazerem fila, voluntariamente, às portas das fábricas, oferecendo-se para serem explorados. Disfarçado de contrato entre pessoas livres e iguais, o contrato laboral não regulamentado pode tornar-se, em certas situações, uma forma de usura aviltante em que a relação entre patrão e assalariado é tão livre quanto a relação entre chantageador e chantageado.
Pretender, pois, que o objectivo do capitalismo é trazer de volta a escravatura só pode ser uma figura de estilo.

7 comentários:

André A. Correia disse...

Cara Maria Clara,

Para quem afirma que "nada percebo de economia" estamos perante um notável tratado.

Cumprimentos.

PS. Os Açores valeram bem a pena, não?

MCA disse...

Valeram e de que maneira!

Professor disse...

Por isso é que alguns entendidos dizem que a situação dos escravos era mais humana que a dos actuais proletários. O escravo era caro, o dono devia alimentá-lo e velar pela sua saúde e "conforto" para que ele continuasse a produzir e o seu valor pudesse ser aumentado. Com os assalariados o ónus da subsistência e da conservação da vida e da saúde deixou de ser suportado pelos patrões, daí eles se estarem "borrifando" para as condições de salubridade das tarefas e dos locais de trabalho. Os custos dos erros são suportados pelo mais fraco. A liberdade formal do trabalhador é maior que a do escravo mas a liberdade informal, ou real, é a mesma.

Vera disse...

Sim, sim uma interessante dialéctica ... gostaria de ver se seria possível explicá-la aqui em Africa sem criar tumultos ! ...

MCA disse...

Brikbrok, eu não quero dizer que é melhor ser escravo que assalariado. As implicações morais do estatuto do escravo são óbvias. O que eu faço é uma comparação estritamente económica dos dois estatutos, do ponto de vista do empregador. E, para o empregador é, realmente, mais rentável ter um assalariado. Isto, num quadro de liberalização total do emprego, claro.

Anónimo disse...

Este post daria um óptimo acto de stand up comedy! Será sensato fazer uma "comparação estritamente económica " entre o estatuto de escravo e assalariado???
Talvez...numa perspectiva meramente cómica e teatral.
Se a sua intenção era fazer rir este post está delicioso! Parabéns.

MCA disse...

Caro anónimo,
Fazer rir, não, fazer pensar: pensar no absurdo que é reduzir tudo a números. Pensar no absurdo que é olhar para o trabalho como um mero produto comercial. Pensar no absurdo que é tratar as pessoas em termos de rendimento, como se fossem máquinas (tipo x litros aos 100 km). O mais triste é que a tendência actual é para ver as pessoas dessa maneira.
Se achou a comparação absurda, estamos em sintonia.