Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

18 maio 2011

«Ao Provedor do Telespetador [sic] da RTP» [FMV]

«Ao Provedor do Telespetador [sic] da RTP» [FMV]

Bruxelas, 14 de Maio de 2011

Ex.mo Senhor
Dr. José Carlos Abrantes

Senhor Provedor do Telespetador [sic] da RTP,

Prometo a V. Ex.ª que tentarei evitar comentários demasiado técnicos, pedindo desculpa por eventuais imprecisões terminológicas, que se justificam (parece paradoxo, mas garanto que não é) por ser meu único objectivo explicar a leigos em fonologia e fonética (áreas diferentes do saber) e em grafemática e grafética (idem) o erro de se chamar “telespetador” a um telespectador. De antemão, portanto, as minhas sinceras desculpas.

Gostaria de chamar a atenção para o facto de a designação do cargo de V. Ex.ª violar as regras mais elementares quer dos compostos morfológicos da língua portuguesa (1), quer das regras do processo do vocalismo átono do português europeu (2), devendo V. Ex.ª rever com carácter de urgência a designação, pois existe solução para este problema (3).

(1) A palavra telespectador (com C) designa “Que ou aquele que assiste a um espectáculo de televisão”. Esta acepção (do dicionário em linha da Priberam) parece ser adepta da tese segundo a qual o elemento tele- é desconsiderado enquanto radical grego, preferindo afirmar-se que provém da palavra “televisão”. Não sou adepto desta tese, mas não é aqui o lugar para debater matérias do foro académico. Contudo, considerando o radical (espect), que sucede a um prefixo (tel) e precede uma vogal temática (a) e um sufixo (dor), peço a V. Ex.ª que se concentre no radical. ‘Espect’ explica-se pelo latim spectātor. Contudo, V. Ex.ª é “Provedor dos Telespetadores”. Teremos então um inexistente radical ‘espet’, que não se explica pelo latim spectātor, mas pelo germânico speuta, que deu palavras portuguesas como “espeto” (espet + o) e alemãs como Spieß .

(2) Direi a V. Ex.ª que, segundo o processo do vocalismo átono do português europeu, i.e., o processo que ocorre em português europeu, citando de cor palavras de Esperança Cardeira (poderei enviar mais tarde as referências a V. Ex.ª), “as vogais não acentuadas sofreram, na norma do português europeu, um acentuado processo de enfraquecimento”. Ou seja: perante “telespetador” é previsível que V. Ex.ª (ou qualquer outro falante de português europeu) pronuncie [tɛlɛʃpɨtɐ'doɾ] em vez de [tɛlɛʃpɛtɐ'doɾ].

(3) «telespectador/telespetador» são duas acepções aceites (princípio da facultatividade do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990) em português europeu, como verificará no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de João Malaca Casteleiro (caso V. Ex.ª não saiba, co-autor e negociador do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990), publicado pela Porto Editora. Gostaria de perguntar a V. Ex.ª qual a razão de optar pela segunda e não pela primeira. A primeira é válida, conforme poderá verificar na página 555 da publicação que acabo de mencionar.

Tenho outros comentários sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, mas, para já, limito-me a esta matéria do “telespectador” vs. “telespetador”.

Para o esclarecimento de qualquer dúvida, encontro-me ao inteiro dispor de V. Ex.ª

Agradeço toda a atenção dispensada,
E envio os meus cordiais cumprimentos.

Francisco Miguel Valada

Intérprete de Conferência profissional junto das Instituições da União Europeia e autor do livro Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009), do artigo “Os lemas em ‘-acção’ e a base IV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990″, Diacrítica – Série Ciências da Linguagem, n.º 24/1, pp. 97-108, Braga: Universidade do Minho, 2010 e de artigos na imprensa sobre a matéria em apreço.

3 comentários:

PJA disse...

Aquele pessoal da caça submarina e os baleeiros são telespetadores, pois espetam à distância.

Jaime A. disse...

O AO serve os falantes da Língua Portuguesa, ou será o contrário?


É claro que sempre que há mudança, há resistência. No entanto, fará sentido este AO? Será mesmo necessário? Houve alguma sondagem junto dos académicos-"guardiões" da nossa Língua, acerca do AO? Deixo estas interrogações à laia de comentário triste de quem vê a sua Língua descaracterizar-se sem qualquer boa razão científica.

PJA disse...

Pode-se dizer que houve alguma coisa. O problema é que os consultados foram, invariavelmente... contra!
Ou seja, exceptuando o inigualável Casteleiro, autor e único apoiante do monstro, todos os linguistas consultados se opuseram a esta reforma. Por isso, o poder político prescindiu de mais opiniões e avançou. Não tendo sido mostrado que houvesse alguma vantagem para Potugal neste acordo, mas tendo sido, ao contrário, claramente afirmado e demonstrado que as desvantagens seriam muitas, posso concluir que o AO é um acto de traição à Pátria.