Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

08 fevereiro 2008

Empréstimo ou aluguer (6)

Vou retomar aqui um tema que interrompi há alguns meses. Este e os próximos posts foram escritos ao longo destes meses mas fui sempre adiando a sua publicação.

Insisto em olhar sempre as várias facetas de uma questão.
Defendo intransigentemente o acesso livre à informação e à cultura.
Defendo, naturalmente, que o Estado deve proporcionar igualitariamente todos os meios para esse acesso e que esses meios devem ser, obviamente, financiados pelo erário público ou seja, por todos nós que pagamos impostos.
Não defendo, contudo, que o acesso à cultura - como à saúde, à instrução ou a qualquer outro direito - deva ser proporcionado a todos lesando direitos fundamentais de alguns.
Pretender que as bibliotecas públicas - logo, o Estado - proporcionem o empréstimo gratuito à custa dos direitos de autor é «serrar presunto em casa dos outros». Muito fácil e muito desonesto.

Não, queridos visitantes deste sanctus sanctorum da liberdade que é a biblioteca de Jacinto Galeão! Não me passei para o outro lado da barricada. Leiam até ao fim, se tiverem paciência.

É um facto consumado que o comodato (vulgo empréstimo) público vai ser taxado. A vizinha Espanha já mudou a lei (Ley 10/2007, de 22 de Junio). A Itália, se não mudou, vai mudar. A Irlanda, idem. E nós vamos também. Vamos todos, quais carneirinhos obedientes, baixar a cabecinha e enfiar-nos no redil europeu. Claro, os utilizadores das bibliotecas não vão pagar pelo empréstimo, era o que mais faltava. O empréstimo vai ser pago pelo orçamento das bibliotecas ou pela administração central do estado.
Não há volta a dar. O lobby das editoras, dos livreiros e das discográficas, que já conseguiu pôr-nos a pagar taxas pelas cassetes virgens, pelos CD graváveis, pelos equipamentos de reprodução (mesmo quando todos estes sejam usados para gravarmos e filmarmos a nós mesmos e aos nossos amigos), vai conseguir, agora, pôr-nos - através do orçamento das câmaras ou do Ministério da Cultura - a pagar taxas também pelo empréstimo nas bibliotecas.
Tudo para não lesar os bolsos dos autores! Dizem eles...

Mas será que é mesmo? Vejamos.

A defesa do empréstimo pago assenta em algumas premissas que, a serem verdadeiras, justificariam a pretensão.

Todos os leitores de livros são compradores de livros.

Por cada livro emprestado na biblioteca há um livro que fica por vender na livraria.

De cada vez que alguém lê um livro sem pagar por isso está a explorar o trabalho do autor.

O mais importante para um autor é vender os seus livros.

Não sei se haverá alguém que consiga ler estas premissas sem se aperceber do profundo ridículo que lhes subjaz. Pelo menos alguém de boa fé, de espírito aberto, alguém que não tenha interesse pessoal no assunto.
Eu não tenho. Graças a Deus, nunca deixei de ler um livro por não ter dinheiro para o comprar. Eu não preciso das bibliotecas públicas para ler o que quero. Se eu quero ler um livro, compro-o. Tal como faço se quero ouvir um disco ou ver um filme. Eu não tenho qualquer interesse pessoal no empréstimo gratuito. Também não trabalho numa biblioteca que faça empréstimo pelo que não tenho, sequer, uma posição a defender, uma política a justificar.

Eu limito-me a pensar. E a usar o bom senso que é uma coisa que falta cada vez mais por aí.

Vejamos a primeira premissa:

1ª Todos os leitores de livros são compradores de livros.

ERRADO. Todos os leitores de livros são potenciais compradores de livros. Isso significa que os leitores podem ou não comprar os livros que lêem; que os leitores podem só comprar livros que ainda não leram; ou até que os leitores podem só comprar livros que já leram. O comprador de livros pode nunca pôr os pés na biblioteca e, mesmo que o faça, se é um habitual comprador de livros, não irá deixar de os comprar por causa da biblioteca. Pelo contrário, um leitor que não é comprador de livros pode tornar-se, por causa da biblioteca: porque leu, porque adquiriu hábitos de leitura, porque quer levar para casa os livros que de que gostou e que conheceu, precisamente, na biblioteca.

2ª Por cada livro emprestado na biblioteca há um livro que fica por vender na livraria.

ERRADO. Se o habitual comprador de livros não vai deixar de comprar por causa da biblioteca e o leitor que não costuma comprar pode passar a fazê-lo é óbvio que, por cada livro emprestado na biblioteca, há um livro na livraria que ganha hipóteses de vir a ser comprado.

3ª De cada vez que alguém lê um livro sem pagar por isso está a explorar o trabalho do autor.

ERRADO. Errado pelo que já ficou dito em relação às duas premissas anteriores. E errado porque isso equivale a comparar o trabalho criador ao trabalho numa fábrica. O trabalho de um autor - seja ele artístico ou científico - tem muito mais implicações e consequências que se estendem muito para além das cem, duzentas ou mil folhas de papel de um livro ou dos poucos gramas de plástico de um CD. As suas consequências a curto e longo prazo são imprevisíveis e o impacto que podem ter no seu público não são mensuráveis mediante qualquer fórmula matemática. Um livro pode mudar para sempre a vida de uma pessoa. Como é que se contabiliza isto?

4ª O mais importante para um autor é vender os seus livros.

ERRADO. ERRADÍSSIMO! Talvez a maior mentira no meio disto tudo, exactamente porque é em nome dos autores que os defensores do empréstimo pago falam. É em nome dessa ideia de «vender livros». O mais importante para um autor é que a sua obra seja conhecida e apreciada. Isso é o mais importante. Tudo o resto vem por acréscimo.

7 comentários:

Anónimo disse...

Concordo plenamente e assino por baixo. Deixo ainda o meu testemunho de leitora.

Se gosto de um livro que experimento na biblioteca, compro-o, para o poder ter em casa e ler, reler, no todo ou em parte, deliciar-me com AQUELA passagem, sem ter que estar dependente de datas de entrega.
Se não conheço um livro, não arrisco a comprá-lo: "experimento-o" primeiro, e as bibliotecas são o local ideal para o fazer.
Por isso, espero (mesmo que pouco esperançada), que continue a haver empréstimo, gratuito.
Porque se o orçamento da biblioteca for para pagar o empréstimo, onde fica a possibilidade de adquirir novos livros ou de fazer AQUELAS actividades que nos tornam mais e melhores leitores?

Leonor disse...

Vim fazer a minha ronda habitual e "tropeço" neste post. Não fazia ideia do que se estava a passar, vou ler com mais cuidado, mas os argumentos são tão falaciosos e tão deslocados no tempo e nas tecnologias que raiam o absurdo.
Bibliotecas e livrarias têm públicos diferentes que nem sempre se relacionam ou que, sendo o mesmo as procuram com objectivos diferentes. Sendo frequentador/consumidora dos dois géneros não vou à procura das mesmas coisas.
no tempo da internet, dos e-books, da edição electrónica e de projectos em que se procura novos futuros para o livro (e veja-se o que acontece hoje com a vizinha música: disponibilizada na rede pelos próprios músicos, vendida ou oferecida em pacotes com publicações periódicas, etc, etc)só mesmo cá no burgo para impedirmos - taxando - o acesso à cultura.
A sociedade da informação afinal é para quem?

Anónimo disse...

O que é a sociedade da informação?

Anónimo disse...

Como é óbvio concordo com o post.

A questão não é só, no entanto válida para livros mas para todas as outras "coisas audiovisuais".

A "conversa" dos autores, não é a conversa dos autores, mas sim a conversa de multinacionais do livro e restantes produtos culturais que querem controlar - através de um sistema obsoleto e anti democrático o acesso a bens culturais, de toda a ordem.


o ataque que é feito - ao livro - através do empréstimo pago tem duas vertentes: atacar um bem que tem características diferentes e mais duráveis e permite que toda a gente no mundo inteiro a ele aceda, e ao mesmo tempo que se ataca o livro- o acesso a ele; tenta-se empurrar as pessoas para o digital( seja lá oq ue for) digital esse dominado pela conversa/discurso do "direitos de autor".

Que está feito à medida dos interesses de dois ou 3 países e nos quais esses dois iu 3 países investem estrategicamente para manterem o domínio cultural/supremacia nessa área.

É esta mesma lógica que explica O ataque ao P2P e ao software livre, que explica as tentativas de atacar o conceito de neutralidade da Internet", etc.

AA disse...

Não defendo, contudo, que o acesso à cultura - como à saúde, à instrução ou a qualquer outro direito - deva ser proporcionado a todos lesando direitos fundamentais de alguns.

Eu até concordaria, se as bibliotecas tivessem um só livro, umas só passagens - 1984, as passagens sobre doublethink.

Não há igualitarismos sem agressão de direitos fundamentais - nomeadamente e mais importante, o de não ser obrigado a pagar para causas com as quais se discorda.

MCA disse...

Um só livro?...
Não me parece muito liberal :-)
Bem vindo, sempre, à BdJ, AA.

Anónimo disse...
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