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12 janeiro 2007

As razões da escolha VI

A despenalização do aborto tem sido objecto de debate desde há muitos anos em muitos países. Até há alguns anos atrás, o debate situava-se, exclusivamente, no domínio das convicções íntimas, da fé. Um cristão consideraria que, a partir do momento da concepção, o pequeno ser é dotado de uma alma imortal feita à imagem e semelhança do Criador. Essa concepção religiosa tem contaminado o debate da pior forma porque o desvia da discussão humanista para a discussão de fé. Quando os Estados Unidos despenalizaram o aborto, no início da década de 70, pouco se sabia ao certo sobre a vida intra-uterina e o argumento religioso era, de facto, o principal entrave. Entretanto, não é só Deus que não dorme, a Ciência também não tem estado parada. Desde o uso da ecografia, durante os anos 70, a tecnologia que permite conhecer e compreender a vida intra-uterina não parou de evoluir mas os argumentos não acompanharam essa evolução; principalmente os argumentos dos que defendem a legalização. Para estes, parece absolutamente irrelevante toda a qualquer descoberta científica que possa abalar ou exigir um reajustamento nos seus argumentos.
E, afinal, esse conhecimento é essencial para formar uma opinião: porquê dez semanas e não oito ou doze? é irrelevante? qualquer número serve desde que se despenalize? quem concorda com as dez semanas concordaria com as catorze? e quem discorda das dez semanas, concordaria com oito? ou com seis? não interessa? em que fundamentamos a nossa decisão? no sim porque sim, no não porque não?

Infelizmente, tenho lido e ouvido muito "sim porque sim" e muito "não porque não". Essas respostas não me satisfazem, de todo. Sempre gostei de formar as minhas opiniões com base em fundamentos sólidos e tenho acompanhado assiduamente o debate, principalmente nos blogues pró e contra a despenalização. Não sou médica, nem sequer tenho uma formação de base em Ciências, e tudo o que sei sobre o assunto resulta de pesquisas na Internet, em sites especializados. E o que encontrei levantou-me algumas questões: por exemplo, ainda não consegui perceber como será feita a contagem das semanas: pelo critério clínico, ou seja, a contar da última menstruação (duas semanas antes da concepção), ou pelo critério genético, ou seja, a contar da concepção. Para quem a resposta é "sim porque sim" ou "não porque não" esta questão é irrelevante porque o referendo só serve para levar a água a um certo moinho. Para quem pretende dar uma resposta fundamentada não é uma questão dispicienda porque não estamos a discutir uma pergunta generalista mas uma pergunta específica que refere, expressamente, um determinado número de semanas.
Se as dez semanas forem contadas a partir da última menstruação, este prazo corresponderá a um embrião com oito semanas de idade (o período embrionário dura oito semanas, contadas a partir da concepção). Se as dez semanas forem contadas a partir da concepção, este prazo corresponderá a um feto de dez semanas de idade (quase todos os órgãos e estruturas do feto estão formados, só precisam de crescer e desenvolver-se até o parto) mas todos os sites da especialidade consideram que, nesta altura, temos uma gravidez de doze semanas e não de dez.
Não haverá debate sério nem esclarecedor enquanto estes critérios não forem muito bem definidos. Poderão, de um lado e de outro da "barricada", argumentar que isso não interessa nada, as pessoas já estão suficientemente baralhadas e isso só iria confundir mais. Mas, então, porque é que meteram o número de semanas na pergunta?

As razões da escolha V. As razões da escolha IV. As razões da escolha III. As razões da escolha II. As razões da escolha I.

10 comentários:

O bibliotecário anarquista disse...

Olá Clara,

Sou a favor da despenalização. Em primeiro lugar o aborto é uma prática reiterada ao longo da história da humanidade por toda a gente (obviamente do sexo feminino). Não é um crime de homicídio executado por psicopatas. Em segundo lugar porque todos os dias (hoje inclusivamente) estão cerca 20 mulheres portuguesas a fazê-lo ilíciatmente na clínica de los arcos em Badajoz (e um número indeterminado em Portugal). Conheço quem tenha feito e não os os considero criminosos. Logo se não são criminosos. Despenalize-se! Acho também rídiculo que a opçãp delas seja considerada um crime, a não ser em países não seculares como o Irão ou a Arábia Saudita. É uma situação rídicula e desigualitária porque só afecta as mulheres portuguesas pobres. Verdadeiramente pobres, pois a classe média e alta estão-se perfeitamente a "cagar" (desculpa a expressão!) para a lei, como é óbvio.

Por último - E ISTO É QUE ME IMPORTA - impressiona-me muito mais a crueldade a barbaridade que ainda se comete com inúmeras crianças em Portugal do que o aborto em si. Só nos últimos seis meses temos o relato de pelo menos quatro crianças com menos de sete anos brutalmente mortas / assassinadas pelos seus familiares. Isto é que é uma CATÁSTROFE!. Nunca aconteceria em países como a Holanda ou a Finlândia onde às poucas mulheres (ou famílias) socialmente desenquadradas ou com distúrbios de personalidade é facultada a opção do aborto para que ATROCIDADES como o que vimos à poucas semanas em Monção não aconteçam. Tenho dois filhos pequeninos e isto DESTROÇA-ME muito mais do que milhões de abortos.

Em termos filosóficos creio que para mim o valor DIREITO DAS CRIANÇAS está hierarquicamente acima do valor DIREITO À VIDA INTRA UTERINA.

Se me tivesse de confrontar com a opção ter sido abortado (em qualquer altura) ou morrer aos dois anos espancado pela minha mãe, ser abandonado com poucos dias num caixote do lixo, ou ser violado e assassinado pelo meu padrasto optava (sem dúvidas) pela primeira. Na verdade não era preciso tanto, bastava não ter o que comer, não ter mimo e não ter escola para optar logo pela 1ª.

Sei que não te vou convencer de qualquer forma aceita um abraço,

Adalberto
(vemo-nos no congresso)

MCA disse...

Adalberto,
Eu ainda não disse aqui n'A biblioteca de Jacinto, qual a minha opção de voto... Como podes ver (se leres os outros posts) tenho estado a compilar e a reflectir sobre algumas das inconsistências das diferentes posiçõe, pró e contra. E olha que são muitas!

Orlando Braga disse...

«Eu entendo que procuremos tentar desculpabilizar o aborto. Afinal, tantas mulheres já abortaram, porque é que não consideramos o aborto como uma coisa normal, comparada a uma excrescência fisiológica, e consideramos o feto uma coisa que se expele do corpo, porque indesejável? Porque é que mulheres e homens têm que viver em estado de culpa?»
É mais ou menos isto, um dos argumentos utilizados a favor da total despenalização do aborto até ao final do período de gravidez, porque é realmente disto de que estamos a tratar. Já lá vamos. Mas a propósito de culpabilização: quando alguém assume um erro, deixa a consciência muito mais leve e pode “partir para outra”. O problema de consciência está sempre em quem, obstinadamente, não quer reconhecer um erro cometido.

O que é o Humanismo? Resumido, é um movimento renascentista positivista antropocêntrico. Filosofias políticas geradas pelo Humanismo positivista: comunismo marxista, nazismo e neoliberalismo actual.
O positivismo já deu lugar ao post-positivismo, que se iniciou basicamente com Karl Popper quando este se insurgiu contra esse tal “Humanismo” que esteve na origem dos horrores do nazismo; com ele (Popper), nasceu o “racionalismo crítico”, que sugere que o Homem deve manter, perante o positivismo humanista, uma atitude crítica. É tudo o que pedimos aos Humanistas: uma atitude crítica.

O nazismo foi “humanista”, positivista; sofreu a influência de positivistas e grandes humanistas, entre outros, Rousseau e Nietzsche. Naturalmente que podemos com propriedade dizer que, em plena Idade Média, a ICAR inventou a Inquisição. Mas há 60 anos, a Europa viveu uma Idade Média tenebrosa, e a inquisição ao pé do nazismo positivista e humanista, foi uma brincadeira. O que passou com Mao na China e os milhões de mortos da revolução chinesa foi feito em nome do Humanismo; e foi o Humanismo que matou milhões no Camboja de Pol-pot.
Portanto, a “superioridade moral” do Humanismo é uma falácia perigosa, comparável à “superioridade moral” da esquerda que gerou Estaline e outros. Criticar uma fé religiosa e defender a superioridade da fé positivista e materialista, é sempre optar por uma fé contra outra, uma atitude sectária (de seita).

Um médico conta sempre a partir da singamia. Em termos médicos, quando falamos em 10 semanas, são dez semanas a partir da singamia, até porque as menstruações são irregulares e podem até nem aparecer antes da ovulação que esteve na origem da gravidez. Às dez semanas o feto está formado, mas desde a singamia que o ADN é único, distinto de todos os outros ADN de todos os outros seres humanos, e como dizem os humanistas, “o ser humano não se repete”. O nosso coração começa a bater à semana 4 de evolução no ventre da nossa mãe. Se o ser humano não se repete, como é que o Humanismo pode ir contra a singularidade existencial de um feto?

«Mas, então, porque é que meteram o número de semanas na pergunta?» Pergunta inteligente. E voltamos à culpa. O processo de desculpabilização social não se faz abruptamente sem choques culturais graves. O partido nazi alemão foi criado em 1918, e só em 1941 começou a cumprir o seu ideário (mais de vinte anos a preparar uma política de desculpabilização do Untermenschen Vernischtung. O povo alemão nunca poderia ter feito o que fez sem uma “anestesia” cultural conseguida ao longo de muitos anos de propaganda política. O povo alemão não é monstruoso, nem é diferente do povo português, neste aspecto. Se os nazis dissessem a um alemão, nos anos vinte, que os judeus deveriam ser todos os mortos, chegariam ao poder? Claro que não. Mas o holocausto judeu sempre fez parte da agenda política do nazismo.
De igual modo, se nos dissessem que este referendo pretende liberalizar o aborto até aos 8 meses e 29 dias, teria alguma hipótese de ganhar o SIM? Zero. Perdia. Por isso é que lá estão as semanas.

MCA disse...

Orlando "Bom garfo"
Você mostra saber muito mais da parte biológica do que eu (tive de ir procurar o significado de "singamia"...). No entanto, tenho algumas dúvidas sobre a questão designadamente quanto à individualidade do zigoto (uma vez que pode dar gémeos) e também aos casos de "ovo cego" em que o zigoto inicia a evolução, nida mas só a placenta se desenvolve.
Os seus comentários serão sempre um interessante contributo para esta debate. Volte sempre.

O bibliotecário anarquista disse...

Jeeesus?... Bom Garfo!

Tinha-me esquecido realmente que o Nazismo foi terrivel porque dizimou 45 MILHÕES.... DE FETOS HEBRAICOS... Que os khmers vermelhos cometeram o genocídio de dizimar 100 MILHÕES... DE FETOS cambodjanos, que o imperador MING construiu a grande muralha da china à custa de 300 milhões de FETOS chineses, e que Estaline enviou para os Gulags na SIBÉRIA 900 milhões... de FETOS dissidentes.


Pergunta?
Eu sei que provavelmente sou um TÓTÓ (PSEUDO HUMANISTA)DE ESQUERDA, mas o que é que esta galeria de sanguinários tem a ver com a despenalização do aborto? O que é que o kulus tem a ver com as kalças?...

O que é que os simpáticos estadistas têm a ver com as 40 portuguesas que acabaram de abortar hoje (clandestinamente ou no estrangeiro até às 13h, segundo as estatísticas), conduta essa que constitui crime à luz da lei Portuguesa.

Adeus e bom apetite, Mister Garfo! Bom Garfo. Eu, pessoalmente, perdi a fome.

MCA disse...

Caríssimos
Acho a posição do Orlando exagerada mas acho que se pode daí retirar alguma coisa. Eu penso que o que ele quiz dizer foi (em linguagem chã) que de boas intenções está o inferno cheio.

Unknown disse...

Eu já me decidi (pelo sim) mas aprveito para por aqui um link que pretende esclarecer sobre a partir de quando se deve começar a contar o tempo:
http://www.medicospelaescolha.pt/informacao/gravidez

MCA disse...

Rui pedro
Obrigada pelo link. Volte sempre.

JPN disse...

fiquei muito surpreendido. confesso que há muito que tenho a minha opinião formada e por isso não tenho neste referendo a oportunidade que vc tem de coligir argumentários e de andar, por terras do sim ou do não, a descobrir razões ou a falta delas. mas gostei muito de ver esse movimento em procura de uma determinada razão. e levantando questões que me deixaram também desprevenido, como essa da contagem das semanas. parabéns.

MCA disse...

JPN
Obrigada pelas suas palavras. A minha intenção é pôr as pessoas a pensar para além das ideias feitas que já têm. Por isso ainda não revelei a minha posição. Para ser lida sem preconceitos.