Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

18 dezembro 2006

As razões da escolha

Existem duas posições radicais em relação à interrupção voluntária da gravidez (vulgo aborto): uma, que encara o feto como um dom divino, comum entre católicos, e que, por essa razão, não admite o aborto, sejam quais forem os motivos; outra, que encara o feto como uma parte do corpo da mulher, comum entre a extrema-esquerda, e que aceita o aborto, sejam quais forem os motivos.

Na minha modesta opinião, ambas as posições estão erradas: a primeira, porque pretende tornar verdade universalmente aceite uma ideia religiosa que, naturalmente, só é válida para os crentes; a segunda, porque faz tábua rasa de toda a investigação médica realizada durante as últimas três décadas sobre a vida intra-uterina e rejeita, sem qualquer fundamento científico, a existência de um ser humano (ainda que "incompleto" ou em desenvolvimento), logo "outro" em relação à mulher que o gerou.

Estas duas posições radicais geram, normalmente, atitudes radicais. Vemos os primeiros as chamarem assassinos aos segundos e estes a chamarem fanáticos àqueles. No contexto actual, este tipo de discussão não só não leva a lado nenhum como é contraproducente, numa altura em que o mais importante é esclarecer as pessoas para que, no momento do referendo, cada um tenha a consciência exacta do que está a fazer e das consequências do seu voto.

Existem, depois, as várias posições intermédias: os que defendem apenas o aborto terapêutico, ou seja, os casos em que a saúde ou até a vida da mulher grávida está em risco; os que defendem também o aborto eugénico, ou seja, os casos de mal-formação do feto; existem, ainda, os que, para além dos casos anteriores, defendem o aborto no caso de violação; e, finalmente, os que defendem também o aborto por razões socio-económicas, ou seja, os casos em que o prosseguimento da gravidez conduziria a consequências muito graves na estabilidade económica e social da mulher grávida.
Todas estas posições intermédias se baseiam no princípio do mal menor, mas todas exigem um motivo para realizar a interrupção da gravidez. Temos uma coisa indesejável - o aborto - que é colocada em confronto com outras coisas indesejáveis. Colocadas no prato da balança, o que varia nestas posições é o peso que cada uma atribui a cada um destes "males".

Enquanto entre posições radicais não há discussão possível, entre estas posições intermédias (a da maioria da população, reconheça-se) há todo um debate que urge fazer, sem proselitismo, sem radicalizar posições e nunca, nunca rotulando as pessoas que tomam uma ou outra posição.

Gostava de ver mais serenidade na campanha para o próximo referendo.

Actualização: nem de propósito, acabo de ler uma das exposições mais inteligentes e honestas a favor do Sim que encontrei até hoje. Não estou a dizer que concordo. Estou a dizer que assim vale a pena discutir.
Já agora, por uma questão de imparcialidade, remeto-vos também para um bom post argumentando pelo Não. E a entrevista de um agnóstico assumido, contra o aborto.

9 comentários:

Anónimo disse...

Não me parece, cara colega, que alguém no seu perfeito juízo defenda o aborto. E penso, aliás, que nem mesmo a esquerda o defende.
Há, no entanto, a necessidade de ter uma visão realista sobre o assunto.
Existe, no nosso país, uma rede devidamente constituída, agilizada e funcional de apoio social? Tratamos os nossos pobres com a dignidade que os mesmo merecem?
Uma adolescente que engravide tem o amparo do Estado enquanto entidade socialmente responsável?
Dá o Estado o apoio necessário para que essas mães possam criar os seus filhos com dignidade? Deveria, pois efectivamente temos uma população envelhecida que muito beneficiaria com esta renovação geracional. E, caso as respostas às supracitadas questões fossem positivas, seria eu o primeiro a pugnar pelo não, no próximo referendo. Mas as coisas não são - nem estão - neste patamar de "abrangência social". Por isso, e por todas as mulheres que têm de acrescentar à sua já condição miserável uma situação ainda mais miserável de um aborto em vão de escada, parece-me que a orientação para o voto no próximo referendo é óbvia...
Gaspar

MCA disse...

Não a esquerda toda, certamente. Mas a extrema-esquerda do «na minha barriga mando eu» tornou o aborto como uma espécie de direito das mulheres e passa uma imagem de "orgulho abortista" à semelhança do "orgulho gay" que, a meu ver, raia o doentio. A esmagadora maioria dos portugueses é contra o aborto como simples método contraceptivo. Incluindo a maioria dos que tencionam votar Sim.
O que eu me questiono - e repare que me abstenho de tomar posição n'A biblioteca de Jacinto - é se o debate está a ser bem conduzido, se estão a ser colocadas as questões certas e com a abordagem certa. Como bibliotecária, é esta a questão me interessa colocar aqui. E eu penso que não, que o debate está a ser mal conduzido por todos os intervenientes porque todos colocam as perguntas em função das respostas que já têm.

3Picuinhas disse...

Mais uma vez a mesma questão... A do aborto, à semelhança das questões relacionadas com a droga (consumo, entemda-se, ou prostituição, a prática da mesma) são questões cinzentas de legislação dificil. A mim ocorre-me sempre a ideia que legislado, permitido, proibido ou liberalizado, o aborto sempre foi praticado desde as épocas mais remotas. E por mais difícil que seja de aceitar, é e sempre foi uma decisão tomada no feminino. Não acredito no aborto como medida contraceptiva, assim como não acredito que alguma mulher o faça sem mágoa. Para mim a questão resume-se a dois pontos essenciais: evitar o aborto clandestino, com absoluta falta de condições que por um lado elimina o feto (ou embrião) e por outro coloca em risco a vida da mulher; e a questão da opção pela dignidade, não permitindo que mulheres que se submetem a intervenções de risco (pelos mas diversos motivos) sejam levadas a tribunal e vejam exposta uma situação melindrosa. Eu escolho o sim, porque obviamente um país civilizado tem de zelar pela dignidade. Quanto ao debate concordo com a Clara, nem sempre as questões são colocadas da melhor forma. Infelizmente por aqui ainda se coloca esta questão fundamentando-a muitas vezes em bases de cariz religioso e ideológico, deixando de lado as questões verdadeiramente que são as de cariz social. Legislado ou não o aborto existirá sempre por isso parece-me a mim que o mais sensato será encontrar uma forma de enquandrar dentro de limites da razoabilidade, enquadrá-lo de forma a evitar o "aborto de vão de escada" garantindo que quem tem de recorrer a estes métodos encontra locais adequados. E já agora, um acompanhamento eficaz das mulheres, nomeadamente das de mais fracos recursos económicos, grupos de risco e adolescentes poderá ser uma forma eficaz de reduzir o número de abortos anual.

Anónimo disse...

Tens toda a razão, efectivamente essa imagem de orgulho abortista é doentia... mas sempre que a referires não te esqueças dos falsos moralistas nacionais que, à conta do terço, esconjuram o mal dos outros, se calhar recém-chegados de uma viagenzita de urgência a Espanha, para lavarem a honra das filhas, sobrinhas, enfim... Ou é esperado pensar que, do total de abortos realizados num ano - segundo a TSF, foram 18.000 os abortos ilegais em 2005 - todos eles foram de pessoas de esquerda, que defendem o "na minha barriga mando eu"? Não me parece, aliás mais depressa acredito no "na-minha-barriga-manda-a-minha-mãezinha-e-não-vou-ser-eu-aos-16-que-vou-manchar-a-honra-da-família". Digo-o com à-vontade pois sou católico, pertenci durante quase 20 anos a um movimento católico e sei bem da hipocrisia - que existe em todo o lado, há que ressalvar - inerente a estas situações.
Subscrevo inteiramente as razões da Helena: evitar o aborto clandestino e pugnar pela dignidade.
Quanto ao facto de, enquanto bibliotecária, quereres apenas discutir a forma como se aborda o problema e não as posições de cada um, tenho que dizê-lo: isso dava um post muito interessante! Será que, pelo facto de termos responsabilidades acrescidas na disponibilização de informação e conhecimento, temos de guardar as nossas opiniões - mesmo que polémicas - para nós mesmos?
Gaspar

MCA disse...

Gaspar
Tenciono revelar a minha posição aqui na BJ como já fiz em outros foros. Para já, prefiro não o fazer para evitar a reacção do tipo "pois, vê-se logo que vai votar ...". Se ninguém conseguir perceber qual a minha opção, é sinal de que estou a conseguir uma abordagem imparcial. De certa forma é um teste a mim mesma. Mas, lá mais para a frente vou tomar posição e até vou pôr um daqueles logotipos que já há por aí na net. Mais tarde. Já agora, Gaspar, em que biblioteca estás?

Anónimo disse...

Vou fazer um teste a mim mesmo!
Dir-te-ei... mais tarde :-)
Gaspar

MCA disse...

O.K. é justo. :-)

Anónimo disse...

Olá eu sou o Jacinto. O trolha de Massamá. E estou a escrever para dizer que sou a favor da actual lei do aborto. É uma lei boa e e não é por ser cristão ou assim... é que esta lei é a minha última esperança de ver a melga da minha Maria no chilindró. É que ela já fez dois desmanchos e é tão chata, tão chata, tão chata e tão rabujenta que eu queria que o ministério público e a polícia a metessem dentro. Alguém me pode ajudar?... E já agora? Apesar de ter sido eu a engravidá-la por 15 vezes... eu não vou dentro, pois não?...
Obrigados
Jacinto

Anónimo disse...

Cara Helena,
não posso concordar com a sua afirmação de que apenas esteja em causa a dignidade do acto de abortar :"Legislado ou não o aborto existirá sempre por isso parece-me a mim que o mais sensato será encontrar uma forma de enquandrar dentro de limites da razoabilidade, enquadrá-lo de forma a evitar o "aborto de vão de escada" garantindo que quem tem de recorrer a estes métodos encontra locais adequados."
Isso é uma abdicação. Na verdade, não é por algo ser usual que não deve ser reprimido. Aliás, é o contrário: só se reprime o que se torna usual, porque aquilo que acontece pela primeira vez não tem previsão legal repressiva. Assim, ninguém defenderá a legalização do roubo de esticão só porque ele prolifera... nem ninguém dirá que não é crime esse acto se a carteira tiver pouco dinheiro...
aquilo que eu suponho que pretende afirmar é que a criminalização pura e simples não tem tido outro efeito que não seja o da clandestinidade, isto é, não cessa o problema, antes o aumenta. De acordo!
Mas, se vai votar SIM por esse motivo, reflicta um pouco.
1. A candestinidade vai continuar, ou porque as 10 semanas já lá vão e não há hipótese legal para o aborto, ou porque o anonimato leva a recusar a clínica legal com todo o envolvimento burocrático decorrente.
2. A questão ética permanece: pode o Estado dar cobertura legal à destruição de uma vida humana pela mera formação da vontade de alguém? Se sim, por que não até às 20 ou 30 semanas? Ou o ser vivo em causa merece protecção e o seu sacrifício exige que um bem maior esteja em causa (princípio da proporcionalidade), e essa é a lei que temos, ou o ser vivo em causa não merece protecção e é tratado como um objecto negligenciável, sendo esta a solução que decorre do SIM.
3. Acho que se isto fosse bem colocado (como pretende a bibliotecária MCA) a vitória do NÃO seria certa.

Nota: cara MCA, não concordo com a afirmação de que ambos os lados da discussão têm debatido mal o problema. Na verdade, o SIM não tem outro argumento além da falência moral: se não podemos evitar, mais vale legalizar (o que, se aplicado a outras áreas de punibilidade, terá interessantes efeitos).
Já o NÃO tem apresentado argumentos de fundo. Discutíveis, é certo, mas só o são porque têm base para o debate.