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18 janeiro 2007

As razões da escolha IX

Os argumentos que tenho lido contra e a favor no próximo referendo, têm colocado o ênfase na distinção entre despenalização e liberalização. Argumentam uns que, o que está em causa, o que importa decidir é se as mulheres que abortam devem ou não ser julgadas e, eventualmente, presas, pelo facto de abortarem. E acusam quem não defende a despenalização de querer mandar as mulheres para a prisão.
Argumentam outros que a pergunta, da forma como está formulada, vai além da despenalização, conduzindo a uma verdadeira liberalização.
Passando por cima do lado fácil - quase cabotino - da imagem das mulheres pobres e desgraçadas entregues às garras da justiça, é necessário, para uma discussão séria, perceber que, na pergunta estão em causa quatro variáveis, sendo as segunda, terceira e quarta limitativas e explicativas da primeira. E são estas quatro variáveis que vão a referendo, não apenas a primeira.

A primeira variável é apresentada no início da pergunta: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez...».
Despenalização, neste caso, significa isenção de pena, não significa, necessariamente, licitude do acto. Já li a explicação de vários juristas em relação a esta distinção. Dizem eles que um acto ilícito pode ser isento de pena por variadas razões (necessidade, desconhecimento, legítima defesa, etc.) sem que passe a ser lícito.
Esta despenalização (isenção de pena) pode abranger todos os agentes do acto (grávida, médicos, parteiras, companheiro...) ou pode abranger apenas alguns agentes, em particular aquela ou aqueles que se encontrem (presumivel ou comprovadamente) em estado de necessidade desculpante. A pergunta poderia ser colocada nos termos em que está ou poderia contemplar uma variável: «Concorda com a despenalização da grávida pela interrupção voluntária da gravidez...», caso em que só a grávida seria isenta de pena mas os restantes agentes poderiam ser detidos, julgados e punidos.
Seria possível colocar a referendo uma pergunta nestes termos mas não é esta a pergunta que vai a referendo.

A segunda parte da pergunta contém uma variável que limita a primeira parte: «...se realizada, por opção da mulher...» mas não acrescenta muito. Na verdade, se a mulher não desse o seu consentimento nunca poderia ser penalizada, ainda que o aborto fosse provocado. Estaríamos, neste caso, na presença de um outro ilícito, mais grave, que seria o aborto provocado por terceiros contra a vontade da mulher. Por isso, para o que interessa - a "despenalização das mulheres que abortam" - esta segunda parte da pergunta nada acrescenta a menos que esteja implícita, também, a despenalização dos "terceiros", dos que praticam ou incitam à prática do aborto.
Mas não se pode deduzir desta pergunta que esteja em causa a ilicitude do acto de abortar.

A terceira parte da pergunta contém uma variável que limita cronologicamente a primeira: «...nas primeiras dez semanas...». Imediatamente se deduz que, a partir das 10 semanas, o acto (além de ilícito) passa a ser penalizável. Serão investigados, detidos, julgados e punidos todos os agentes desse acto, sejam os médicos e parteiras, seja a mulher grávida não havendo qualquer distinção, qualquer nuance, entre uns e outra.
Verdadeiramente, começam aqui os problemas que encontro na pergunta: se o objectivo é evitar que as mulheres que abortam sejam perseguidas, humilhadas, julgadas e condenadas, um prazo tão curto não deixará "desabrigada" aquela percentagem de mulheres que recorrem - e continuarão a fazê-lo - depois destas dez semanas? Porque é que estas mulheres são dignas de menos atenção, respeito e protecção do que aquelas que o fazem até às dez semanas? Mais, sendo o aborto tanto mais perigoso (e mais caro, também) quanto mais adiantada estiver a gravidez, não ficarão desprotegidas precisamente as mulheres que mais necessitam de protecção, aquelas que mais arriscam, aquelas que mais "pagam" com a sua saúde pelo acto de abortar?

A quarta e última parte da pergunta tem duas faces opostas: por um lado, limita a primeira mas, por outro lado alarga-a. Eu explico.
«...em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?» limita, porque deixa de fora - penaliza, portanto - as mulheres e agentes que pratiquem o aborto fora de um estabelecimento de saúde legalmente autorizado. E alarga porque só aqui, nesta frase, se percebe que o aborto não deixa apenas de ser penalizado, dentro de determinadas circunstâncias; passa também a ser lícito. Passa a ser lícito porque pode ser realizado num estabelecimento legalmente autorizado. Num hospital público, por exemplo. Ou numa clínica.
E é aqui que está o busílis. É que, enquanto em relação às três primeiras partes da pergunta, toda a gente está de acordo, com mais ou menos reservas (nunca ouvi alguém que tencione votar Não defender que se atirem as mulheres para a cadeia), em relação a esta última parte já não se passa assim. Não se trata apenas de não penalizar quem pratica o acto mas de autorizar a prática desse acto. De dar a esse acto uma protecção legal. Não será liberalizar mas é, incontestavelmente, legalizar.

Por outro lado, esta última parte da pergunta gera uma situação, no mínimo, bizarra: o acto de abortar, em si mesmo, deixa de ser ilícito, o que passa a ser ilícito é praticá-lo fora de um estabelecimento autorizado. É um pouco como se eu pudesse ser punida por recorrer à bruxa em vez de ir ao médico. Quero dizer, a mulher que recorre a uma parteira clandestina põe a sua vida em risco e ainda é punida por isso. Não por abortar.
Um estabelecimento de saúde não autorizado configura prática ilegal de medicina e é a prática ilegal de medicina que deve ser punida, não o recurso a ela. Ora, o que esta pergunta nos diz é que uma mulher que recorra a um estabelecimento não autorizado para praticar um aborto lícito (dentro das dez semanas) incorre na mesma pena que uma outra que pratique um aborto ilícito (necessariamente num estabelecimento não autorizado). É absurdo!

As razões da escolha VIII. VII. VI. V. IV. III. II. I.

1 comentário:

F. disse...

Não existe no mundo nada mais importante do que a vida humana, não sou a favor do aborto.

Mas, sou a favor de que seja a mulher a tomar a decisão de abortar ou não e, caso aborte que não seja julgada.

O mundo não precisa de crinças desprezadas pelas mães.

A mulher que mande no seu corpo mas cautela que nunca pense o aborto é mais um método contraceptivo.