Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

30 abril 2007

Modernices de linguagem: Inteligência

Uma coisa é perceber uma língua estrangeira, outra, bem diferente, é traduzi-la. Para traduzir uma língua não basta conhecer essa língua, é necessário dominar a língua da tradução. Como há cada vez menos gente a saber português, designadamente no meio jornalístico ( mas não só), têm aparecido nas últimas décadas umas modernices de linguagem que me irritam particularmente.
Uma delas é "serviços de inteligência" que ocorre em substituição dos velhinhos "serviços secretos" ou dos "serviços de informação". Não. Agora a moda é dizer "serviços de inteligência". Fui espreitar o Lello. Nada. Inteligência só com o sentido que a gente conhece. Fui ver o Huaiss. Já lá aparece, claro, mas como anglicismo. Palavrinha importada do inglês, por tradução directa. O que é, no mínimo, idiota. Porque a raiz é latina, porque em inglês a evolução semântica foi outra e porque é idiota ir a uma língua não latina buscar um termo de raiz latina, que nós também temos, e adoptá-lo com o sentido deles e não com o nosso.
E que tal um bocadinho mais de inteligência, ao escrever na língua de Camões?

27 abril 2007

Rostropovich (2)

BACH, Johann Sebastian - Suite para violoncelo, No. 1

Rostropovich

BACH, Johann Sebastian - Suite n.º 1.

Tenho sempre alguma dificuldade em usar o verbo morrer para pessoas como Rostropovich. Prefiro dizer que partiu. Tinha 80 anos.

26 abril 2007

A arca do conselho

Já estava para desligar esta coisa quando soube de uma notícia cuja relevância não posso ignorar! Finalmente, FINALMENTE, o Jorge Afonso tem um blogue.
Chama-se A arca do Conselho.
O que guardará a arca? Guardemos, perdão! Aguardemos.

23 abril 2007

Um ciclo que se fecha?

Acredito que estamos a atravessar o período de decadência que caracteriza as mudanças de ciclo histórico de longa duração. O facto de nos apercebermos tem a ver com a visão de conjunto que hoje podemos ter e que nos é dada pelos meios que temos ao nosso dispor. Existem muitas pessoas, hoje, que se apercebem disto enquanto, no passado, em outros períodos de decadência, foram muito poucos os que se aperceberam. Isto não invalida que em todas as gerações tenha havido pessoas a dizerem que o mundo estava pior do que quando essas mesmas pessoas eram jovens. Penso que há uma subtil diferença entre a nostalgia de um passado mitificado e uma análise fria do presente, com conhecimento histórico.

Duvido (mas não excluo) de que a civilização ocidental (de tradição greco-romana-cristã), enquanto ciclo de longuíssima duração, esteja a chegar ao fim. Mas não tenho a mais ténue dúvida de que o ciclo que vulgarmente se designa por Idade Contemporânea - mas que é mais longo do que dizem as cronologias, cujo esquisso se situa algures na geração de Voltaire e tem os seus antecedentes nos Descobrimentos portugueses - esse ciclo, dizia, já chegou ao fim. Vão ter que lhe arranjar um nome.
Esse ciclo teve como mínimo denominador comum a procura de modelos de sociedade baseados em valores de justiça e de respeito pela pessoa. Contra a sociedade de ordens, em primeiro lugar, pela valorização do ser humano e do seu potencial enquanto indivíduo e enquanto parte de uma cultura bem como o seu direito à felicidade. Desse ciclo fizeram parte a Revolução Científica, o Iluminismo, a Revolução Americana, a Revolução Francesa, as revoluções nacionais, os socialismos, a Doutrina Social da Igreja, os Direitos do Homem. Como em tudo, houve excessos: a revolução científica dá origem ao positivismo e ao materialismo; a revolução industrial faz crescer o capitalismo a uma supremacia imprevisível; as revoluções nacionais, que nascem socialistas, dão origem aos fascismos; dos socialismos (inicialmente utópicos) nascem as ditaduras comunistas. Mas houve inúmeras coisas positivas: a conquista de direitos laborais, os direitos das mulheres, o fim da escravatura, os direitos sexuais, tudo conquistas da democracia ocidental. Tudo com vista a atingir o tal modelo de sociedade baseado em valores de justiça e de respeito pela pessoa.

Este já longo ciclo corresponde a uma das mais fascinantes épocas que a História regista. Como os mártires do cristianismo primitivo, também milhares de pessoas, em vários pontos do mundo e ao longo de centenas de anos, morreram por ideais que visavam, não um Paraíso para além da morte, mas um paraíso terreno que se afigurava possível graças a uma crença inabalável nas capacidades da humanidade, materializadas num progresso científico sem precedentes: «Quem não admirará os progressos deste século?».

O princípio da decadência, situo-o na Segunda Guerra, não antes. Todas as épocas têm as suas crises de identidade e as do século XIX são crises de identidade, não de decadência. Resultam das transformações sociais demasiado rápidas causadas, em simultâneo, pela Revolução Industrial e pelas revoluções nacionais. São como as pequenas crises sísmicas que servem para ajustar as placas. Estão ligadas ao que se passa hoje na medida em que tudo está ligado com tudo, em maior ou menor escala.
Acho que as grandes tiranias do entre-guerras ainda fazem parte do ciclo anterior, o mínimo denominador comum está lá. São causa da decadência mas não são ainda a decadência. Confundi-las é como confundir o caterpilar com a casa em ruínas. A Segunda Guerra, sim, é a grande martelada. Foi aí que se começou a perder a esperança nas ideologias, nos modelos de sociedade que nos iam tornar a todos mais felizes. Depois do aparente fulgor idealista do pós-guerra, a decadência processa-se e já lá vão mais de 60 anos. Em termos históricos, não é demais para um processo de decadência. As coisas ainda podem piorar muito. Estou convencida que nos espera uma longa idade muito difícil e que vem aí muito sofrimento para a humanidade.

Antes desse ciclo, a procura de modelos de sociedade não existia porque a sociedade era imutável, estava estabelecida à partida, por uma alegada vontade divina (de que a Igreja era a única intérprete) e a felicidade procurava-se depois da morte, não antes.
No novo ciclo que iniciamos a procura de modelos de sociedade não existe porque tudo é mutável, tudo é relativizável, não há valores fundamentais, o individuo é a medida de todas as coisas e o egoísmo puro e simples, pragmático e operacional, é uma motivação socialmente aceite porque cómoda e porque, se serve para ti também serve para mim: salve-se quem puder.

Não é uma visão apocalíptica. Se não se der a destruição do planeta, outro ciclo virá, com coisas boas e coisas más, como sempre aconteceu. Mas, nesta fase, vivemos em retrocesso.
Nos últimos 15 anos, então, o retrocesso acelerou-se. O fim da guerra-fria gerou uma espécie de euforia, quando parecia que as coisas iam melhorar. Muitas pessoas acreditaram (eu fui uma delas) que vinha aí um ciclo de progresso social, de democracia e liberdade. Acreditaram que o terrorismo ia diminuir ou acabar porque tinha perdido os seus principais mentores. A democracia de tipo ocidental (seja lá o que isso fôr) parecia ser o modelo perfeito que se ia espalhar pelo mundo. Iam acabar as convulsões sociais, as greves, os atentados. O capitalismo selvagem (eufemisticamente rebaptizado de neo-liberalismo), esse, não constituía qualquer perigo porque não havia terreno para se desenvolver. Uma sociedade próspera, livre, democrática, seria incompatível com o sistema capitalista e os próprios capitalistas compreenderiam que uma sociedade feliz e democrática consome mais do que uma sociedade pobre e oprimida.
Balelas! O Dr. Jeckil transformou-se em Mr. Hide. Hoje, em vez de duas super-potências que se degladiam, ficou uma só, insaciável de poder, sem moral, sem escrúpulos, sem ideias. Não é um país, parece um país, mas não é. É uma multi-nacional. Já não há povos, há mercados. Já não há países, há economias. O internacionalismo, afinal, não era comunista. Para nos salvar, talvez os extra-terrestres. Se o Marx tinha razão (e ainda não está provado que não tivesse) o Capitalismo acabará por se auto-destruir. Mas o que ficará depois? É muito difícil prever o que irá acontecer, com base na História, porque nunca uma tão grande decadência ética, social e intelectual coexistiu com um tão brilhante progresso científico e tecnológico. Essa é uma realidade historicamente nova. Enquanto isso, discute-se a diminuição em 15% da fome, nos próximos 10 anos. Ou será 10% nos próximos 15 anos? É irrelevante porque equivale a discutir se os maus são os gnomos ou os duendes. É ficção. No mesmo período de tempo, os E.U. vão enviar uma nova missão à lua. Isso não é ficção.
O que nos resta (para além do suicídio, até porque, no meio disto tudo, estar vivo continua a ser melhor que estar morto)?
Resta-nos «cuidar do nosso jardim».

18 abril 2007

Escravos e assalariados

Tenho lido algumas reacções ao Boletim económico da Primavera do Banco de Portugal, que propõe uma flexibilização do mercado de trabalho, acusando o Dr. Vítor Constâncio de pretender voltar à escravatura.
Não é justo nem sequer inteligente. Eu nada percebo de economia mas não é preciso ser entendido para perceber isto: a escravatura não é rentável. Repare-se: um escravo tem de ser comprado. A compra de um escravo implica um investimento inicial que, em alguns casos, pode até ser bastante elevado, já que o vendedor do escravo procurará subir o preço o mais possível. Por outro lado, o escravo é vendido por terceiros, não se vai oferecer ao seu "patrão", é escravo contra vontade e não quer continuar nessa situação. Está, pois, de má vontade, à partida. Entretanto, uma vez comprado, há que mantê-lo vivo e saudável, para que ele trabalhe. Se o escravo adoecer ou morrer antes de o investimento inicial estar amortizado - com trabalho - ou se contraír alguma doença, o escravo resulta em prejuízo. As probabilidades de o escravo adoecer ou morrer, por seu lado, são inversamente proporcionais aos cuidados que lhe forem prestados, os quais, por sua vez, também implicam custos. Isso implica um investimento posterior e continuado a alimentá-lo, vesti-lo, dar-lhe condições de habitação salubre (ele não pode adoecer, lembram-se?) e vaciná-lo.

Agora, vejamos a situação de um assalariado, num sistema de total liberalização do emprego. Logo à partida, ressalta uma diferença fundamental: ao contrário do escravo, o assalariado vai à procura de emprego. É o candidato ao trabalho que se dirige ao potencial patrão, não é patrão que vai ao mercado comprá-lo. O assalariado quer o emprego. Por isso, não pode regatear o seu salário, como o faz o vendedor de escravos. Ao contrário do escravo, que quererá libertar-se do seu estado, o assalariado quererá mantê-lo. Por outro lado, o assalariado não implica qualquer investimento inicial. Se um patrão contratar um assalariado e, no dia seguinte, o assalariado adoecer, isso não tem custos para o patrão. Se o assalariado morrer de fome, seja ao fim de um dia, seja ao fim de um ano, isso não tem custos para o patrão. Se o assalariado adoecer por falta de condições de habitação ou por falta de cuidados de saúde, isso não tem custos para o patrão. O patrão não precisa de fazer nada para manter o seu assalariado vivo e saudável, logo, além de não haver investimento inicial, também o investimento durante a vigência da relação de trabalho é menor do que no caso de um escravo.

A escravatura e o capitalismo não se dão nem nunca se deram bem. Por alguma razão a decadência da escravatura acompanhou a ascensão do capitalismo. Por alguma razão a Revolução Industrial, com o desemprego que a acompanhou, não promoveu a escravatura mas o trabalho assalariado. Só o drama do desemprego e o fantasma da fome poderia levar, durante o Século XIX (e hoje, nos paraísos da «deslocalização») milhares de seres humanos a fazerem fila, voluntariamente, às portas das fábricas, oferecendo-se para serem explorados. Disfarçado de contrato entre pessoas livres e iguais, o contrato laboral não regulamentado pode tornar-se, em certas situações, uma forma de usura aviltante em que a relação entre patrão e assalariado é tão livre quanto a relação entre chantageador e chantageado.
Pretender, pois, que o objectivo do capitalismo é trazer de volta a escravatura só pode ser uma figura de estilo.

Ne me quittes pas

Pela letra (tem qualquer coisa de trovadoresco), pela emoção da voz, pelo piano.

BREL, Jacques - Ne me quittes pas



Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le cœur du bonheur
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'après ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vu deux fois
Leurs cœurs s'embraser
Je te raconterai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

On a vu souvent
Rejaillir le feu
D'un ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas.

17 abril 2007

Paper Music

Acabo de criar uma rede social de bibliotecários e arquivistas de música. Chama-se Paper Music e está sediada na Ning. O meu objectivo é pôr em contacto bibliotecários e arquivistas de música bem como outras pessoas que, não tendo formação académica ou profissional em Ciências Documentais, trabalham, no seu dia a dia com documentação musical e com património musical. Agora é como uma árvore: esperar que cresça.

Sull'aria

Das Bodas de Fígaro, por Lucia Popp e Gundula Janowitz.
Também vou cantar esta, com a Sílvia. E vai saír tal e qual!

15 abril 2007

Garbo

Morreu a 15 de Abril de 1990.
Única e irrepetível, como toda a gente.


Única e irrepetível, como só ela.

13 abril 2007

Ernâni Oliveira

Ernâni Oliveira é, na minha leiga opinião, um dos melhores artistas plásticos portugueses da sua geração. Sem nunca ter passado para a ribalta do meio artístico - nem sempre sinónimo de qualidade objectiva - tem tido uma carreira discreta mas consistente. A sua actividade artística estende-se do vitral à pintura passando pela ilustração, a gravura, o design de comunicação e industrial, a cerâmica e o mobiliário. A docência foi a outra área a que se dedicou com paixão, até 1998. Actualmente, dedica-se quase exclusivamente à pintura, área em que se formou na ESBAL.
Além da pintura e serigrafia, em colecções particulares, são várias as obras de Ernâni Oliveira espalhadas pelo país, com especial destaque para os revestimentos (azulejo, vitral, fresco e mosaico) em edifícios públicos.

Ontem estive na inauguração de uma pequena exposição, no simpático espaço do restaurante Giuseppe di Verde (na Calçada da Ajuda), onde conversámos sobre a obra dele e sobre muitas outras coisas


e ainda me deu autorização para fotografar dois quadros para expôr n'A biblioteca de Jacinto. A qualidade da imagem não faz justiça às obras.

Além da cor, o que mais aprecio na pintura de Ernâni Oliveira é o traço, bem patente nestes barcos, de um rigor e precisão extraordinários...


... e a composição, de que destaco esta Feira da Ladra.



Não sou entendida em pintura. Ou gosto ou não gosto. E eu gosto da pintura de Ernâni Oliveira.

12 abril 2007

202 ou A biblioteca de Jacinto II

«Oh, a invasão dos livros no 202! Solitários, aos pares, em pacotes, dentro de caixas, franzinos, gordos e repletos de autoridade, envoltos em plebeia capa amarela ou revestidos de marroquim e ouro, perpetuamente, torrencialmente, invadiam por todas as largas portas a Biblioteca, onde se estiravam sobre o tapete, se repimpavam nas cadeiras macias, se entronizavam em cima das mesas robustas, e sobretudo trepavam contra as janelas, em sofregas pilhas, como se, sufocados pela sua própria multidão, procurassem com ânsia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns vidros mais altos restavam descobertos, sem tapume de livros, perenemente se adensava um pensativo crepúsculo de Outono enquanto fóra Junho refulgia. A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina sem que de trás surgisse, hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!
«Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que, no meu quarto, moido e mole de um passeio a Versalhes, com as pálpebras poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito, praguejando, um pavoroso Dicionário de Indústria em trinta e sete volume! Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facúndia humana... E já me estirara, adormecia, quando topei, quase parti a preciosa rótula do joelho, contra a lombada de um tomo que velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo afrontoso - que entornou o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci - porque os meus pés, a que não sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim que o luar branqueava, depois na Avenida dos Campos Elisios, povoada e ruidosa como numa festa cívica. E, oh portento! Todas as casas aos lados eram construídas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com títulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia, avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna em flácidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de Exegese e Crítica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para além das nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Eles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos por espessas crostas de livros, de onde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um raiozinho de luz sufocada e ansiada. E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o Paraíso - porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos - o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a mão super-forte que o Mundo criara - e o Criador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro coruscante. O livro era brochado, de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.»
(QUEIRÓS, Eça de - A cidade e as serras)


A biblioteca de Jacinto (I)

Summa bibliothecologica II

Aqui o slideshow preparado pelo Júlio, sobre o painel de blogues.

11 abril 2007

Summa bibliothecologica

Já não era sem tempo, tenho tanta coisa para escrever e mostrar que nem sei por onde começar. Quero escrever muito profissionalmente sobre o Congresso, quero escrever muito apaixonadamente sobre a ilha de São Miguel, quero escrever muito pessoalmente sobre os meus colegas virtuais da blogosfera que conheci no Congresso. E é difícil escrever sobre tudo isto num único post sem ficar uma grande sopa.
Em vez de seguir uma ordem cronológica (ou qualquer outra lógica) vou seguir a ordem que me ditar o correr das teclas.

Começo pelos meus colegas dos blogues, que tive o enorme prazer de conhecer. É uma sensação estranha (na medida em que não me é familiar) esta de conhecer ao vivo pessoas que já conhecia dos blogues, algumas com quem já contactava há meses. De repente, estávamos todos a tratar-nos por tu, com a maior naturalidade, como se nos conhecêssemos há imenso tempo. Podia ter dado mau resultado, podiam ser uns chatos, podia faltar a conversa ao fim de cinco minutos... mas não! A conversa fluiu com naturalidade, os encontros no Alcides (o restaurante oficioso dos bibliotecários e arquivistas, em Ponta Delgada) sucederam-se até ao fim do Congresso e a promessa de novos encontros ficou, já com data marcada.




Nasceu ali qualquer coisa e essa é uma sensação muito agradável. Talvez um dia (presunção e água benta, cada qual toma a que quer...) se venha a dizer que ali se fez história. O tempo o dirá.

O Congresso propriamente dito foi um pouco diferente dos outros em que estive. Menos «pesos-pesados» (quem esteve no painel dos blogues percebe o que quero dizer) do que é costume, muita gente nova - fiquei particularmente feliz de ver ex-alunos meus - muita gente dos Açores e um ambiente bastante descontraído. A própria localização do Congresso contribuíu para este ambiente pois quase todos os participantes estavam "deslocados" e muito longe de casa, o que não aconteceu no Porto e em Cascais.
Como tive duas participações (uma numa comunicação e outra no painel de blogues) acabei por assistir a menos comunicações do que desejaria. Gostaria especialmente de ter assistido às comunicações relativas ao perfil profissional que, ouvi dizer, foram bastante participadas. É um tema que me interessa pessoalmente e que acabei por também abordar - embora sem profundidade - na minha parte da comunicação que apresentei (em co-autoria com as minhas colegas do CEM).

Os Açores. Não sei quem disse «Pelos Açores perco-me de amores». Eu perdi-me de amores pelos Açores. Os açorianos são de uma gentileza extraordinária. São educados sem serem artificiais. São atenciosos sem serem servis. Têm o sorriso fácil sem serem patetas. São brincalhões sem serem inconvenientes. São doces sem serem melados. Têm a inocência encantadora dos alentejanos, têm a alegria dos minhotos, o amor-próprio dos transmontanos. E não me refiro aos açorianos que estavam no Congresso, refiro-me aos que conheci fora do Congresso, no hotel, nas lojas, nos restaurantes, o vaqueiro a quem pedi leite da vaquinha, acabado de mugir.
Quero voltaaaaaaaaar!!!!!!