Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

31 janeiro 2007

Outras razões da escolha

Recebi por correio electrónico este texto de um visitante habitual d'A biblioteca de Jacinto, que ora divulgo. Para o PJA, o meu agradecimento.

«Aquilo que, decididamente, os defensores do SIM não conseguem resolver − e, por isso mesmo, fogem à questão com frases tolas do género "não queremos mulheres presas, ou julgadas, ou investigadas", como se as mulheres não fossem cidadãos sujeitos ao Direito − é o seguinte:
1. Actualmente, em Portugal, existe um regime legal de despenalização do aborto, já sobejamente repetido, com casos em que a ilicitude do acto é excluída.
2. Esses casos pressupõem, obviamente, a prática do aborto em estabelecimento de saúde autorizado, bem como a vontade expressa da mulher e, em alguns deles, limites temporais.
3. Fora desse quadro de despenalização, qualquer aborto denunciado leva à instrução de um inquérito, nos termos gerais do processo penal.
4. Daqui, e nos mesmos termos, decorrerá, ou não, o julgamento dos implicados no acto, incluindo a mulher que haja abortado.
5. Em julgamento tem-se verificado que os juízes, de acordo com o Direito concretamente mobilizável, têm chegado a juízos que variam entre a absolvição e a condenação com suspensão da pena.
6. Estas decisões, juridicamente fundadas, em nada violam a lei em vigor. Quanto à absolvição, nem carece de mais explicitações, pois só por ignorância se pode pensar que um julgamento tem de conduzir a uma condenação, quando o que vigora é o princípio transpositivo da presunção da inocência; quanto à suspensão da pena, porque a própria lei admite inúmeros casos em que ela é admissível e, ainda que a lei o não previsse, qualquer aluno do 2º ano de direito sabe que o sistema não se reduz à lei, integrando também princípios normativos, doutrina, jurisprudência e usos, cabendo ao julgador ponderar os interesses e os valores in casu pertinentes.
7. Posto isto, vejamos: dizem os partidários do SIM que pretendem despenalizar, isto é, que a mulher não possa ser penalizada, porque tal situação é incivilizada e injusta.
8. Por mera retórica, admitamos que assim é; mas, se já existe despenalização, aquilo que visariam seria excluir do regime penalizador as mulheres, ou seja, da actual lei (incivilizada e injusta) que prevê a prisão para a mulher que aborta fora do limitado quadro de despenalização passaríamos a uma lei que, pura e simplesmente, não perseguiria penalmente a mulher.
9. Acontece que não é disso que tratam, nem é isso que querem.
10. Aquilo que vão votar e que, por via desse voto, vão viabilizar em sede legislativa é algo equivalente à resposta positiva a uma outra pergunta que se obtém por mera substituição dos termos da equação (não acrescento, nem retiro − apenas torno visível o que já lá está implícito).
11. "Concorda com a aplicação de pena de prisão, na sequência de procedimento criminal, à mulher que pratique a interrupção voluntária da gravidez após as 10 semanas de gestação ou, em qualquer momento da gestação, fora de estabelecimento autorizado?" A esta pergunta os partidários do SIM têm de responder... SIM.
12. É claro que isto alarga, por via da liberalização (que diz respeito aos motivos), o campo da despenalização; mas esse é apenas um problema quantitativo − qualitativamente, continua a haver penalização.
13. Ora, o SIM tem dito, à exaustão, que o NÃO é hipócrita, porque quer manter a lei, mas não quer que ela se aplique (o que já vimos ser falso, porque o facto de não haver arguidas presas não tem nada a ver com a desaplicação da lei).
14. Mas, se o NÃO é hipócrita e o SIM é verdadeiro, honesto, transparente, então só pode defluir uma conclusão: os defensores do SIM no próximo dia 11 vão exigir que, fora do quadro que tão entusiasticamente votaram, os processos se instruam e os juízes, com mão implacável, apliquem a lei e prendam as mulheres. Isso será coerência, isso será decente, isso justificará, enfim, tanto empenho na alteração da lei.
15. Estou seguro de que, à porta dos tribunais, com a habitual cobertura televisiva, teremos os do costume, mas, desta vez, exigindo penas severas para as infractoras.
16. Assim, e concluindo, não acabando com o aborto ilegal, não acabando com a criminalização das mulheres, não reconhecendo dignidade humana ao feto, o que o SIM consegue é uma monstruosa fraude.
17. O que os move, então? Política, obviamente. Sem ética, entenda-se, que isso é coisa reaccionária e medieval.»
PJA

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