O texto do Adalberto aqui... a que se seguiu o meu:
A Biblioteca de Jacinto
A inspiração
«A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao tecto de onde alternadamente, através de cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma - continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezassete!
Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência - e mesmo da estupidez. E o único inconveniente deste monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o Corpo encontrava logo, para mal do Espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.» (A civilização)
A frase lapidar
«Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas coleccionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezassete!»
Está cá tudo: a exaustividade, a pertinência e a especificidade; a gestão de recursos; a imparcialidade.
Mas há mais. Todas as questões actuais associadas às novas tecnologias (da época) e à informação estão presentes no conto e na novela de Jacinto, designadamente aquilo que nós consideramos ser uma característica dos nossos dias como o excesso de informação, a poluição informativa ligada à globalização:
«Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. [...]. Nesse instante rompeu de outro canto um «tic-tic-tic» açodado, quase ansioso. Jacinto acudiu, com a face no telefone:
«— Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr.
«E, com efeito, de uma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma ténia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!
«Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava directamente aquela avaria da Azoff.
«— Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia.» (A cidade e as serras)
A biblioteca de Jacinto é, assim, no espírito e na forma, o meu imaginário de biblioteca. Fascinou-me logo, desde a primeira vez que li a «Civilização», teria 9 ou 10 anos. Que me desculpem os colegas das bibliotecas públicas, a mim nunca atraíram as estantes coloridas e os pufes. Em criança eu gostava de mistério. Gostava de sítios escuros onde tivesse de entrar pé ante pé, espreitando atrás de cada porta ou de cada estante. Gostava de imaginar que, por detrás de um armário de madeira escura, fazendo deslizar um painel, podia encontrar um túnel secreto. Gostava de palácios e de casas antigas. Adorava o corredor sombrio, em chão de tábua, por detrás do guichet de madeira escura – cujo tampo me dava pelo queixo – da Conservatória do Registo Civil do meu bairro, ao qual (corredor) eu não conseguia ver o fundo: uma Conservatória que me veio imediatamente à memória ao ler «Todos os Nomes», de Saramago.
Passava horas a ler, enfiada no sótão da casa de campo dos meus pais, enquanto o Sol brilhava cá fora e a minha Mãe me chamava «está um dia tão lindo, porque é que não vais lá para fora brincar?».
Mas a biblioteca de Jacinto é, simultaneamente, o contrário do ideal de biblioteca:
«- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
«- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
«- Não sei.
«Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta.» (A cidade e as serras)
Se o bibliotecário de Jacinto, com a sua «justa prudência», tentara a gestão óptima do espaço e do saber, esse saber ficara fechado, armazenado, falhara a comunicação.
A biblioteca de Jacinto, «monumental armazém do saber» «formidavelmente abastecido [...] de todas as obras essenciais da inteligência - e mesmo da estupidez» é assim um microcosmos. Tem tudo o que, de bom e de mau, uma biblioteca pode ter e isso torna-a tremendamente real.
Os bibliotecários e os blogues
Tenho-me interrogado – e levantei essa questão no painel do Congresso BAD, em Ponta Delgada – o que leva tantos bibliotecários a terem blogues? Se os sites e páginas pessoais não fascinaram tantos bibliotecários quanto os blogues, qual será a razão? E porquê tantos bibliotecários e tão poucos arquivistas? E o que é que caracteriza os blogues dos bibliotecários, o que os distingue dos outros (se é que algo os distingue)? Haverá uma forma própria de se ser um blogueiro bibliotecário?
Para um bibliotecário, o fenómeno blogue não é uma coisa assim tão nova. Na verdade, é algo muito familiar. Talvez por isso os bibliotecário se sintam tão “em casa” nos blogues.
A edição privada, de carácter "artesanal", existe desde os primeiros tempos da tipografia. A publicação de textos críticos ou de intervenção social, com carácter panfletário, tem, pelo menos, dois séculos. Um óptimo exemplo disso é «As farpas» de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão:
«Nesta jornada, longa ou curta, vamos sós. Não levamos bandeira nem clarim. Pelo caminho não leremos A Nação nem o Almanach das Cacholetas. Vamos conversando um pouco, rindo muito. [...] Assim vamos. E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa: apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal.»
Este “blogue” avant la lettre durou de 1871 até 1883. Se Eça de Queirós e Ramalho Ortigão tivessem tido acesso à tecnologia actual, teriam, seguramente, publicado as suas Farpas num blogue.
A estrutura cronológica do blogue é um retorno à lógica linear do livro impresso (ou até do rolo) que contraria a ideia difundida há alguns anos, de que a estrutura hipertextual era o futuro e que a lógica linear tinha os dias contados.
Outro aspecto curioso em relação aos blogues tem a ver com a ideia mais ou menos difundida de que vêm substituir alguma coisa. Há uns anos perguntava-se se a imprensa on-line iria substituir a imprensa escrita. Antes perguntava-se se o CD e a Internet iriam substituir os livros. Mas antes disso perguntou-se se o cinema iria substituir o teatro, se a fotografia iria substituir a pintura e, séculos antes, perguntou-se se a tipografia iria substituir a escrita manual. Na antiga Grécia houve quem acreditasse que a escrita iria eliminar a tradição oral. Tudo tem o seu lugar e a sua função. E os bibliotecários sabem disso muito bem.
É certo que a Internet se tornou, nos últimos anos, um meio privilegiado de comunicação e um espaço de liberdade de expressão individual e colectiva. Neste meio, os blogues têm assumido particular relevo, se não pela qualidade (a maioria das vezes, duvidosa) certamente pela sua ampla acessibilidade. Se «não há cão nem gato» que não tenha um blogue, hoje em dia, também é certo que nunca, como neste meio, a selecção se fez tanto pelo lado do "mercado" pois, livres dos constrangimentos comerciais, os blogues estão todos igualmente acessíveis a quem usa a Internet e a sua consulta depende única e exclusivamente do interesse que despertam nos cibernautas.
Acho que subjacente à criação de um blogue há sempre uma certa petulância, mesmo que inconsciente. O que me leva a pensar que tenho alguma coisa de interessante para dizer?!? Seja como meio de escape, seja como oportunidade para conhecer pessoas com interesses afins, seja como espaço de debate e de troca de informações, a criação de um blogue tem sempre uma carga voluntarista muito forte e, algures entre o consciente e o inconsciente, revela sempre uma vontade de espreitar o mundo (por detrás do balcão?...) e de perguntar «Está aí alguém?».
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4 comentários:
Maria Clara,
Obrigado pelo teu comentário,
Claro que vou sempre visitar o teu blogue de bibliotecas de música, o primeiro a ser criado em Portugal...
E lendo este teu artigo"Web 2.0 e a Ciência da Informação" só te posso dizer que adorei o texto, e o que pensas sobre as bibliotecas, como a idealizas.
Parabéns! um trabalho muito bem feito.
Quanto à tua questão pertinente, o porque de tantos bibliotecários criarem blogues? bem eu penso que é pela facilidade, pela interacção que permite, e depois como dizes, é muito familiar a nós bibliotecários...
José Pedro Silva
E cá estou eu "por detrás do balcão" porque me interessa aquilo que vais escrevendo...
Acho que o livro terá sempre o seu lugar, diferente.
O blog implica uma relação constante e directa com o autor. E esa relação tem um quê de flutuante e misterioso. Como F. Pessoa dizia "Quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade falo.
É de facto um fenómeno interessante.
errata :-)
ESSA e não esa ...
a questão que levantas sobre porque escrevem os bibliotecários em blogues?, porque se expõem?, etc.É realmente interessante. Difundir a profissão na sociedade? Difusão de notícias relevantes? mostrar como os bibliotecários vêm o mundo?, denunciar? Aprender? Fixar conhecimentos?
Lanço o desafio para continuarmos a reflectir, mas nos post.
obrigada pelo olhar do Jacinto.
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