Penso muitas vezes em professores que tive, de quem gostei e com quem aprendi muito do que sei. Hoje, que se fala tanto mal e tanto bem dos professores, que se faz deles ora os culpados ora as vítimas do sistema, decidi que vou falar e deixar registadas para a posteridade as memórias dos meus professores do Externato Luís de Camões (que já não existe), na Avenida Almirante Reis, por cima da Pastelaria Delta.
Começo pela Setôra Susana. No meu tempo, ainda se estudava o francês como primeira língua estrangeira e a Dr.ª Susana foi a minha primeira professora de francês. Na altura achava-a velhíssima. Na verdade, talvez nem tivesse 60 anos. Recordo-a (com que rigor?) de cabelo completamente branco (ou seria grisalho?), ligeiramente anilado como as senhoras usavam nessa altura. Se tivesse 60 anos, teria mais 50 do que eu. Tinha, certamente, idade para ser minha avó. Se ainda viver, terá hoje uns 90 anos.
Os alunos não sabiam muito bem se haviam de gostar dela ou não. Eu gostava embora não o soubesse. Era uma mulher severa, conservadora, autoritária. Não temia pegar num rapagão de 15 anos pelas orelhas e arrastá-lo pelo corredor até ao gabinete do Director, se fosse preciso. O rapagão, claro, não se atrevia a reagir. Nessa altura, por volta de 1976, as coisas começavam a aquecer bastante e a rebeldia juvenil era uma novidade em Portugal. Ela não se deixava intimidar. Era uma excelente professora, gostava dos seus alunos, acho que quanto mais rebeldes mais ela gostava deles. Se hoje me prezo de bons conhecimentos de francês devo-o, em primeiro lugar, a ela.
Lembro-me, como se fosse ontem, dos sapatos dela, beiges, brancos, castanhos, pretos mas sempre do mesmo modelo muito antiquado (entretanto já voltaram a usar-se e já deixaram de se usar pelo menos duas vezes). Trazia as aulas preparadas num bloquinho pequeno, escrito com uma letra muito densa e que, afirmava-o com orgulho, nunca passava de um ano para o outro: «todos os anos preparo de novo as minhas aulas e tenho em casa todos os blocos de todos os anos». Perto de 40 anos de aulas em bloquinhos "Castelo"!
Quando entrava na sala dizia Bonjour, mes elèves! e nós tinhamos que nos levantar e dizer Bonjour, Madame. Ela respondia Assiez vous e nós sentávamo-nos dizendo Je m'assie.
Depois vinham o Monsieur e a Madame Dupont, o Robert e a Nicole e o cão Patapouf. Só tinhamos um livro, o «Je commence» que trazia uma máscara para tapar as palavras de modo a olharmos só para as imagens enquanto ouvíamos e repetíamos: Je suis Nicole, Je suis Robert, C'est Papatapouf, Patapouf est un chien. Não tínhamos livro de exercícios (os exercícios eram feitos no caderno) e... aprendíamos!
Voltei a tê-la como professora de português, no 9º ano (a que, por falta de hábito, toda a gente ainda chamava 5º ano). Foi com ela que dei Os Lusíadas (que ela parecia saber de cor) e os contos de Eça de Queirós.
Procurei, anos mais tarde, a Dr.ª Susana (nunca soube o apelido dela). Ouvi dizer que lanchava numa pastelaria da Av. de Madrid e cheguei a passar lá, uma ou duas vezes, por volta das cinco da tarde, para a encontrar. Nunca lhe agradeci. Agradeço agora:
- Obrigada, Setôra Susana.
Começo pela Setôra Susana. No meu tempo, ainda se estudava o francês como primeira língua estrangeira e a Dr.ª Susana foi a minha primeira professora de francês. Na altura achava-a velhíssima. Na verdade, talvez nem tivesse 60 anos. Recordo-a (com que rigor?) de cabelo completamente branco (ou seria grisalho?), ligeiramente anilado como as senhoras usavam nessa altura. Se tivesse 60 anos, teria mais 50 do que eu. Tinha, certamente, idade para ser minha avó. Se ainda viver, terá hoje uns 90 anos.
Os alunos não sabiam muito bem se haviam de gostar dela ou não. Eu gostava embora não o soubesse. Era uma mulher severa, conservadora, autoritária. Não temia pegar num rapagão de 15 anos pelas orelhas e arrastá-lo pelo corredor até ao gabinete do Director, se fosse preciso. O rapagão, claro, não se atrevia a reagir. Nessa altura, por volta de 1976, as coisas começavam a aquecer bastante e a rebeldia juvenil era uma novidade em Portugal. Ela não se deixava intimidar. Era uma excelente professora, gostava dos seus alunos, acho que quanto mais rebeldes mais ela gostava deles. Se hoje me prezo de bons conhecimentos de francês devo-o, em primeiro lugar, a ela.
Lembro-me, como se fosse ontem, dos sapatos dela, beiges, brancos, castanhos, pretos mas sempre do mesmo modelo muito antiquado (entretanto já voltaram a usar-se e já deixaram de se usar pelo menos duas vezes). Trazia as aulas preparadas num bloquinho pequeno, escrito com uma letra muito densa e que, afirmava-o com orgulho, nunca passava de um ano para o outro: «todos os anos preparo de novo as minhas aulas e tenho em casa todos os blocos de todos os anos». Perto de 40 anos de aulas em bloquinhos "Castelo"!
Quando entrava na sala dizia Bonjour, mes elèves! e nós tinhamos que nos levantar e dizer Bonjour, Madame. Ela respondia Assiez vous e nós sentávamo-nos dizendo Je m'assie.
Depois vinham o Monsieur e a Madame Dupont, o Robert e a Nicole e o cão Patapouf. Só tinhamos um livro, o «Je commence» que trazia uma máscara para tapar as palavras de modo a olharmos só para as imagens enquanto ouvíamos e repetíamos: Je suis Nicole, Je suis Robert, C'est Papatapouf, Patapouf est un chien. Não tínhamos livro de exercícios (os exercícios eram feitos no caderno) e... aprendíamos!
Voltei a tê-la como professora de português, no 9º ano (a que, por falta de hábito, toda a gente ainda chamava 5º ano). Foi com ela que dei Os Lusíadas (que ela parecia saber de cor) e os contos de Eça de Queirós.
Procurei, anos mais tarde, a Dr.ª Susana (nunca soube o apelido dela). Ouvi dizer que lanchava numa pastelaria da Av. de Madrid e cheguei a passar lá, uma ou duas vezes, por volta das cinco da tarde, para a encontrar. Nunca lhe agradeci. Agradeço agora:
- Obrigada, Setôra Susana.
7 comentários:
Não há dúvida que o ensino mudou e mudou também a educação de alunos e professores, uns porque não sabem ensinar e não se dão ao respeito e outros porque não respeitam nem os pais quanto mais os professoares. O desnorte dos métodos de ensino também contribui e muito para esta falta de respeito a todos os níveis.
Lembramos sempre os tempos passados com uma certa nostalgia,como se fossem um primor, mas também tinham os seus vícios, no entanto tudo comparado com o actual, chegamos à conclusão que viviamos no "paraíso".
MCA, passei por aqui e gostei. Voltarei mais vezes.
Quanto ao post, de facto os professores têm o condão de nos marcar. A uns de forma negativa, a outros, como eu, de forma positiva.
Por isso recordarei sempre com afecto os meus professores.
Nesses tempos...aprendia-se muita matéria dispensável, mas havia critério, rigor, disciplina e respeito.
Os programas eram iguais para todos, os livros idem, os exames também.
Sabia-se quando as aulas começavam e terminavam. E os períodos de férias.
Os professores usavam bata branca, livro de ponto, cadernetas com as fotografias dos alunos, pontos, chamadas, e notas. Que não se discutiam.
Exames nacionais no 2º, 5º e 7º anos, aptidão à universidade. Os cursos escolhiam-se no final do 5º ano.
E não havia internet, nem sequer calculadoras.
E estudava-se.
E sabia-se.
E chegava-se preparado à Universidade.
Outros tempos...e que saudades dos meus professores.
Aliás, Professores com P grande.
Durante a leitura do post, a Dra. Fernanda Rocha foi a primeira que recordei. Grande, volumosa, voz sonante, enchia todo o espaço. Um dia, gritou para um de nós e estilhaçou um vidro da janela. Mas nem os especiais poderes fizeram com que a olhassemos com outros olhos, pois, por detrás daquele ser imenso de tamanho e poder vocal, havia um outro, igualmente imenso de alma.
Era um casal açoriano, sem filhos, perto dos cinquenta. Ela ralhava-lhe, quando ele dizia “gajo”, pois não devia usar esses termos perto dos meninos. E também quando ele dizia “É mentira”, corrigindo com um “Deve dizer-se… Isso não é verdade”. Decididamente adoptaram-nos. Não sei bem porquê a nós entre todas as outras turmas, até lhe faziamos algumas patifarias. Brindavam-nos, um sábado cada mês, com um lanche em sua casa (uma varanda grande ao Restelo, naqueles prédios lá no alto, de onde se avista o rio), pães-de-leite e potes de quilo de gelados da Suiça. E connosco conversavam pacientemente, livros, muitos livros. Assim foi dos meus 12 aos 14, os três anos do liceu.
Durante esses anos, destacam-se dois outros, um tenente-coronel solitário, que nos levava para sua casa nas tarde de quinta. Era uma casa “desarrumada”, os livros em monte pela sala, corredor, e quarto de banho. Neste ritual semanal, punha-nos a escutar Bach, Mozart e Tchaikovski, porventura outros mais mas foram estes os que aprendi a venerar, enquanto nos pedia que descrevessemos os quadros das paredes, e eram muitos.
E, por fim, um mais jovem, teria menos de trinta anos, que apareceu no 4º ano, e que nos levava à Voz do Operário, a ver teatro, bem como a uma casa discreta, teatro “caseiro”. Vim a perceber, depois, que os textos das ditas peças eram denunciadores da revolução que viria breve. Usava bengala, embora caminhasse escorreito, “porque lhe dava ar matemático”, que sabia dificilmente teria, dada a idade.
Apenas agora dou conta, enquanto escrevo, de que, curiosamente, leccionavam, respectivamente, Fisica e Química, Geografia e Matemática. Ou seja, para lá daquilo que ensinavam, e bem, houve um outro saber expressivo e artístico que entenderam dever nos passar.
Hoje, a carga horária é excessiva, deixando pouco tempo para tertúlias e para que se criem laços exteriores ao espaço escolar. Se muitos professores se esquecem de educar o espírito dos alunos - alguns nem sabendo para eles mesmos -, outros gostariam de o fazer mas sem tempo para tal, e porventura sem “público” que anuísse, porque, no que aos alunos respeita, as solicitações exteriores são outras e mais poderosas porque mais fáceis. O fácil não dá trabalho.
Em boa verdade, se cruzámos com professores que, mais do que mestres, foram guias espírituais, também é verdade que nós estavam dispostos a sugar tudo quanto era novo e diferente.
Peço desculpa pela extensão, culpa deste post que me meteu a divagar :) Obrigada por ele, pois há muito tempo não trazia aqueles tempos à lembrança.
[resta acrescentar que sou professora :)]
Um beijo, Clara
Ouvi dizer que morreu. Com ela e com o Dr. Lino Lopes perdeu-se, também, uma época de grande liberdade intelectual. Hoje temos uma vaga liberdade formal, que nos permite falar. Mas vão faltando o tema e o auditório, exceptuados alguns ghettos de lucidez que a blogosfera permite, enquanto "eles" não descobrirem maneira de nos silenciarem.
A Dra. Susana gostava de dizer, com manifesto orgulho, que era "laurentina", designação dos nascidos em Lourenço Marques.
Esse Portugal já não existe, substituído que foi pelo país dos "maputinos". E nesse não há lugar para os professores.
Minha Querida,
E trato-a assim, pelo carinho e respeito com que tratou a sua Professora de FRancês...
É isto que falta a grande parte dos PORTUGUESES...
Um pouco de boa memória, e era escusado tanto ruído!
Também a memória podia servir para encontrar muitas das soluções que não vemos!...
http://vialatina.wordpress.com/
Lembro-me tantas mas tantas vezes da Nicole do Robert de Mr et Mm Dupont e claro do petit Patapouf (aliás hoje deu-me para procurar na internet e "vim parar" ao seu blog. tenho a imagem deles gravada. Obrigada!!!
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