Caríssimos visitantes da biblioteca de Jacinto. Escrevi e editei este texto, neste vosso espaço, há ano e meio. Porque me parece mais actual do que nunca, gostaria de o partilhar de novo convosco.
Um ciclo que se fecha?
Acredito que estamos a atravessar o período de decadência que caracteriza as mudanças de ciclo histórico de longa duração. O facto de nos apercebermos tem a ver com a visão de conjunto que hoje podemos ter e que nos é dada pelos meios que temos ao nosso dispor. Existem muitas pessoas, hoje, que se apercebem disto enquanto, no passado, em outros períodos de decadência, foram muito poucos os que se aperceberam. Isto não invalida que em todas as gerações tenha havido pessoas a dizerem que o mundo estava pior do que quando essas mesmas pessoas eram jovens. Penso que há uma subtil diferença entre a nostalgia de um passado mitificado e uma análise fria do presente, com conhecimento histórico.
Duvido (mas não excluo) de que a civilização ocidental (de tradição greco-romana-cristã), enquanto ciclo de longuíssima duração, esteja a chegar ao fim. Mas não tenho a mais ténue dúvida de que o ciclo que vulgarmente se designa por Idade Contemporânea - mas que é mais longo do que dizem as cronologias, cujo esquisso se situa algures na geração de Voltaire e tem os seus antecedentes nos Descobrimentos portugueses - esse ciclo, dizia, já chegou ao fim. Vão ter que lhe arranjar um nome.
Esse ciclo teve como mínimo denominador comum a procura de modelos de sociedade baseados em valores de justiça e de respeito pela pessoa. Contra a sociedade de ordens, em primeiro lugar, pela valorização do ser humano e do seu potencial enquanto indivíduo e enquanto parte de uma cultura bem como o seu direito à felicidade. Desse ciclo fizeram parte a Revolução Científica, o Iluminismo, a Revolução Americana, a Revolução Francesa, as revoluções nacionais, os socialismos, a Doutrina Social da Igreja, os Direitos do Homem. Como em tudo, houve excessos: a revolução científica dá origem ao positivismo e ao materialismo; a revolução industrial faz crescer o capitalismo a uma supremacia imprevisível; as revoluções nacionais, que nascem socialistas, dão origem aos fascismos; dos socialismos (inicialmente utópicos) nascem as ditaduras comunistas. Mas houve inúmeras coisas positivas: a conquista de direitos laborais, os direitos das mulheres, o fim da escravatura, os direitos sexuais, tudo conquistas da democracia ocidental. Tudo com vista a atingir o tal modelo de sociedade baseado em valores de justiça e de respeito pela pessoa.
Este já longo ciclo corresponde a uma das mais fascinantes épocas que a História regista. Como os mártires do cristianismo primitivo, também milhares de pessoas, em vários pontos do mundo e ao longo de centenas de anos, morreram por ideais que visavam, não um Paraíso para além da morte, mas um paraíso terreno que se afigurava possível graças a uma crença inabalável nas capacidades da humanidade, materializadas num progresso científico sem precedentes: «Quem não admirará os progressos deste século?».
O princípio da decadência, situo-o na Segunda Guerra, não antes. Todas as épocas têm as suas crises de identidade e as do século XIX são crises de identidade, não de decadência. Resultam das transformações sociais demasiado rápidas causadas, em simultâneo, pela Revolução Industrial e pelas revoluções nacionais. São como as pequenas crises sísmicas que servem para ajustar as placas. Estão ligadas ao que se passa hoje na medida em que tudo está ligado com tudo, em maior ou menor escala.
Acho que as grandes tiranias do entre-guerras ainda fazem parte do ciclo anterior, o mínimo denominador comum está lá. São causa da decadência mas não são ainda a decadência. Confundi-las é como confundir o caterpilar com a casa em ruínas. A Segunda Guerra, sim, é a grande martelada. Foi aí que se começou a perder a esperança nas ideologias, nos modelos de sociedade que nos iam tornar a todos mais felizes. Depois do aparente fulgor idealista do pós-guerra, a decadência processa-se e já lá vão mais de 60 anos. Em termos históricos, não é demais para um processo de decadência. As coisas ainda podem piorar muito. Estou convencida que nos espera uma longa idade muito difícil e que vem aí muito sofrimento para a humanidade.
Antes desse ciclo, a procura de modelos de sociedade não existia porque a sociedade era imutável, estava estabelecida à partida, por uma alegada vontade divina (de que a Igreja era a única intérprete) e a felicidade procurava-se depois da morte, não antes.No novo ciclo que iniciamos a procura de modelos de sociedade não existe porque tudo é mutável, tudo é relativizável, não há valores fundamentais, o individuo é a medida de todas as coisas e o egoísmo puro e simples, pragmático e operacional, é uma motivação socialmente aceite porque cómoda e porque, se serve para ti também serve para mim: salve-se quem puder.
Não é uma visão apocalíptica. Se não se der a destruição do planeta, outro ciclo virá, com coisas boas e coisas más, como sempre aconteceu. Mas, nesta fase, vivemos em retrocesso. Nos últimos 15 anos, então, o retrocesso acelerou-se. O fim da guerra-fria gerou uma espécie de euforia, quando parecia que as coisas iam melhorar. Muitas pessoas acreditaram (eu fui uma delas) que vinha aí um ciclo de progresso social, de democracia e liberdade. Acreditaram que o terrorismo ia diminuir ou acabar porque tinha perdido os seus principais mentores. A democracia de tipo ocidental (seja lá o que isso fôr) parecia ser o modelo perfeito que se ia espalhar pelo mundo. Iam acabar as convulsões sociais, as greves, os atentados. O capitalismo selvagem (eufemisticamente rebatizado de neo-liberalismo), esse, não constituía qualquer perigo porque não havia terreno para se desenvolver. Uma sociedade próspera, livre, democrática, seria incompatível com o sistema capitalista e os próprios capitalistas compreenderiam que uma sociedade feliz e democrática consome mais do que uma sociedade pobre e oprimida.
Balelas! O Dr. Jeckil transformou-se em Mr. Hide. Hoje, em vez de duas super-potências que se degladiam, ficou uma só, insaciável de poder, sem moral, sem escrúpulos, sem ideias. Não é um país, parece um país, mas não é. É uma multi-nacional. Já não há povos, há mercados. Já não há países, há economias. O internacionalismo, afinal, não era comunista. Para nos salvar, talvez os extra-terrestres.
Se o Marx tinha razão (e ainda não está provado que não tivesse) o Capitalismo acabará por se auto-destruir. Mas o que ficará depois? É muito difícil prever o que irá acontecer, com base na História, porque nunca uma tão grande decadência ética, social e intelectual coexistiu com um tão brilhante progresso científico e tecnológico. Essa é uma realidade historicamente nova. Enquanto isso, discute-se a diminuição em 15% da fome, nos próximos 10 anos. Ou será 10% nos próximos 15 anos? É irrelevante porque equivale a discutir se os maus são os gnomos ou os duendes: é ficção. No mesmo período de tempo, os E.U. vão enviar uma nova missão à lua. Isso não é ficção.
O que nos resta (para além do suicídio, até porque, no meio disto tudo, estar vivo continua a ser melhor que estar morto)? Resta-nos «cuidar do nosso jardim».
(Editado pela primeira vez em 23 de Abril de 2007)
Um ciclo que se fecha?
Acredito que estamos a atravessar o período de decadência que caracteriza as mudanças de ciclo histórico de longa duração. O facto de nos apercebermos tem a ver com a visão de conjunto que hoje podemos ter e que nos é dada pelos meios que temos ao nosso dispor. Existem muitas pessoas, hoje, que se apercebem disto enquanto, no passado, em outros períodos de decadência, foram muito poucos os que se aperceberam. Isto não invalida que em todas as gerações tenha havido pessoas a dizerem que o mundo estava pior do que quando essas mesmas pessoas eram jovens. Penso que há uma subtil diferença entre a nostalgia de um passado mitificado e uma análise fria do presente, com conhecimento histórico.
Duvido (mas não excluo) de que a civilização ocidental (de tradição greco-romana-cristã), enquanto ciclo de longuíssima duração, esteja a chegar ao fim. Mas não tenho a mais ténue dúvida de que o ciclo que vulgarmente se designa por Idade Contemporânea - mas que é mais longo do que dizem as cronologias, cujo esquisso se situa algures na geração de Voltaire e tem os seus antecedentes nos Descobrimentos portugueses - esse ciclo, dizia, já chegou ao fim. Vão ter que lhe arranjar um nome.
Esse ciclo teve como mínimo denominador comum a procura de modelos de sociedade baseados em valores de justiça e de respeito pela pessoa. Contra a sociedade de ordens, em primeiro lugar, pela valorização do ser humano e do seu potencial enquanto indivíduo e enquanto parte de uma cultura bem como o seu direito à felicidade. Desse ciclo fizeram parte a Revolução Científica, o Iluminismo, a Revolução Americana, a Revolução Francesa, as revoluções nacionais, os socialismos, a Doutrina Social da Igreja, os Direitos do Homem. Como em tudo, houve excessos: a revolução científica dá origem ao positivismo e ao materialismo; a revolução industrial faz crescer o capitalismo a uma supremacia imprevisível; as revoluções nacionais, que nascem socialistas, dão origem aos fascismos; dos socialismos (inicialmente utópicos) nascem as ditaduras comunistas. Mas houve inúmeras coisas positivas: a conquista de direitos laborais, os direitos das mulheres, o fim da escravatura, os direitos sexuais, tudo conquistas da democracia ocidental. Tudo com vista a atingir o tal modelo de sociedade baseado em valores de justiça e de respeito pela pessoa.
Este já longo ciclo corresponde a uma das mais fascinantes épocas que a História regista. Como os mártires do cristianismo primitivo, também milhares de pessoas, em vários pontos do mundo e ao longo de centenas de anos, morreram por ideais que visavam, não um Paraíso para além da morte, mas um paraíso terreno que se afigurava possível graças a uma crença inabalável nas capacidades da humanidade, materializadas num progresso científico sem precedentes: «Quem não admirará os progressos deste século?».
O princípio da decadência, situo-o na Segunda Guerra, não antes. Todas as épocas têm as suas crises de identidade e as do século XIX são crises de identidade, não de decadência. Resultam das transformações sociais demasiado rápidas causadas, em simultâneo, pela Revolução Industrial e pelas revoluções nacionais. São como as pequenas crises sísmicas que servem para ajustar as placas. Estão ligadas ao que se passa hoje na medida em que tudo está ligado com tudo, em maior ou menor escala.
Acho que as grandes tiranias do entre-guerras ainda fazem parte do ciclo anterior, o mínimo denominador comum está lá. São causa da decadência mas não são ainda a decadência. Confundi-las é como confundir o caterpilar com a casa em ruínas. A Segunda Guerra, sim, é a grande martelada. Foi aí que se começou a perder a esperança nas ideologias, nos modelos de sociedade que nos iam tornar a todos mais felizes. Depois do aparente fulgor idealista do pós-guerra, a decadência processa-se e já lá vão mais de 60 anos. Em termos históricos, não é demais para um processo de decadência. As coisas ainda podem piorar muito. Estou convencida que nos espera uma longa idade muito difícil e que vem aí muito sofrimento para a humanidade.
Antes desse ciclo, a procura de modelos de sociedade não existia porque a sociedade era imutável, estava estabelecida à partida, por uma alegada vontade divina (de que a Igreja era a única intérprete) e a felicidade procurava-se depois da morte, não antes.No novo ciclo que iniciamos a procura de modelos de sociedade não existe porque tudo é mutável, tudo é relativizável, não há valores fundamentais, o individuo é a medida de todas as coisas e o egoísmo puro e simples, pragmático e operacional, é uma motivação socialmente aceite porque cómoda e porque, se serve para ti também serve para mim: salve-se quem puder.
Não é uma visão apocalíptica. Se não se der a destruição do planeta, outro ciclo virá, com coisas boas e coisas más, como sempre aconteceu. Mas, nesta fase, vivemos em retrocesso. Nos últimos 15 anos, então, o retrocesso acelerou-se. O fim da guerra-fria gerou uma espécie de euforia, quando parecia que as coisas iam melhorar. Muitas pessoas acreditaram (eu fui uma delas) que vinha aí um ciclo de progresso social, de democracia e liberdade. Acreditaram que o terrorismo ia diminuir ou acabar porque tinha perdido os seus principais mentores. A democracia de tipo ocidental (seja lá o que isso fôr) parecia ser o modelo perfeito que se ia espalhar pelo mundo. Iam acabar as convulsões sociais, as greves, os atentados. O capitalismo selvagem (eufemisticamente rebatizado de neo-liberalismo), esse, não constituía qualquer perigo porque não havia terreno para se desenvolver. Uma sociedade próspera, livre, democrática, seria incompatível com o sistema capitalista e os próprios capitalistas compreenderiam que uma sociedade feliz e democrática consome mais do que uma sociedade pobre e oprimida.
Balelas! O Dr. Jeckil transformou-se em Mr. Hide. Hoje, em vez de duas super-potências que se degladiam, ficou uma só, insaciável de poder, sem moral, sem escrúpulos, sem ideias. Não é um país, parece um país, mas não é. É uma multi-nacional. Já não há povos, há mercados. Já não há países, há economias. O internacionalismo, afinal, não era comunista. Para nos salvar, talvez os extra-terrestres.
Se o Marx tinha razão (e ainda não está provado que não tivesse) o Capitalismo acabará por se auto-destruir. Mas o que ficará depois? É muito difícil prever o que irá acontecer, com base na História, porque nunca uma tão grande decadência ética, social e intelectual coexistiu com um tão brilhante progresso científico e tecnológico. Essa é uma realidade historicamente nova. Enquanto isso, discute-se a diminuição em 15% da fome, nos próximos 10 anos. Ou será 10% nos próximos 15 anos? É irrelevante porque equivale a discutir se os maus são os gnomos ou os duendes: é ficção. No mesmo período de tempo, os E.U. vão enviar uma nova missão à lua. Isso não é ficção.
O que nos resta (para além do suicídio, até porque, no meio disto tudo, estar vivo continua a ser melhor que estar morto)? Resta-nos «cuidar do nosso jardim».
(Editado pela primeira vez em 23 de Abril de 2007)
5 comentários:
Não concordo com o teu texto. Acho que estás com uma visão catastrofista do mundo. Tens uma visão dos aontecimentos históricos muito péssimista. A maior evolução humana em todos os sentidos, económica, cultural, cientifico e técnica dá-se exactamente a partir da 2ª guerra mundial.
Nos últimos 20 anos está a decorrer uma revolução tecnológica que está a transformar o mundo de uma maneira fantástica. O que hoje em dia se chama Globalização está a transformar todas as relações entre pessoas e entre entidades e países. É fantastico as possibilidades que as novas tecnologias conseguem fazer na vida das pessoas.
Eu sou um Utupista, e acredito na evolução das sociedades, e na capacidade dos seres humanos para construir sociedades mais justas e com maiores oportunidades para todos. Só com pessoas óptimistas e que acreditem nos homens é que se podem construir sistemas sociais que levem a um caminho para um ideal de felicidade. É possivel acreditar nisto e defender a Democracia como o melhor modelo politico que se conhece. È obvio que o capitalismo não é um sistema que defenda os mais frágeis mas também não será o Demónio que tu escreves . Tem muitas virtualidades que muita gente tem aproveitado. Acho que no teu texto exageras muito em alguns argumentos. Eu se podesse escolhia o Comunismo como ideia utópica , mas o objectivo de qualquer sistema social deve ser o de dar o maior grau de liberdade ás pessoas e ao mesmo tempo ser capaz de produzir riqueza suficiente para que haja progresso. Históricamente o Comunismo não conseguiu fazer isto.
Isto são só ideias que quis acrescentar ao seu texto , não quis entrar e polémica consigo.
Luis
Luís Neves, obrigada pelo seu comentário, de modo algum considero que alguém que discorde de mim está a entrar em polémica. Pelo contrário, gosto muito de discutir pontos de vista.
Eu nunca escolheria o comunismo como modelo, mesmo utópico. O comunismo, como modelo igualitário (logo, totalitário) que é, vai contra a minha visão do mundo. Por isso sou estruturalmente anti-comunista.
Quanto ao capitalismo, distingo-o do liberalismo embora essa não seja a opinião da maioria das pessoas. É a minha. O capitalismo, como sistema assente no capital (investimento em dinheiro), tende para a plutocracia. É quem tem dinheiro (e quem sabe jogar com ele) que controla, não quem trabalha ou quem tem habilidades e capacidades.
É por isso que me considero liberal (porque acredito na liberdade e nas capacidades individuais) mas anti-capitalista.
Não é uma diabolização do capitalismo. É apenas a observação das suas consequências.
Mas tem razão, estou mesmo muito pessimista.
Mais uma vez, muito obrigada pelo seu comentário discordante.
Boa tarde,
Tenho pena que te digas anti-comunista. Nem entendo muito bem esse tipo de posições. Acho que são tudo menos construtivas.
As pessoas que eu conheço que têm posições Anti, são Anti-Racistas, Anti-Guerra, activistas Anti-Sida, Activistas Anti-fascistas, Anti-descriminação sexual; por essas sim tenho um grande respeito pelo trabalho delas, pela visão solidária e humana que têm dos problemas sociais, e pelo empenho em tentarem modificar as mentalidades das pessoas.
Anti- Comunismo não sei o que é. Nem tão pouco me interessa saber, porque acho uma actitude à partida perconceituosa.
Como li que gostas de falar com gente mais "velha" nas aldeias, vou deixar aqui o que me contou um professor universitário , o Victor que era aqui vizinho da rua. Era Militante Comunista na época da revolução, e era o controleiro nas
reuniões da organização a que pertencia. Nas reuniões em que ele participava um dos militantes era o escritor José Gomes Ferreira. Em algumas reuniões o José Gomes Ferreira chegava atrasado e no fim ia ter com o Victor, a justificar porque se tinha atrasado e a desculpar-se. O Victor ficava muito atrapalhado, estava diante de um escritor que ele admirava muito, um reconhecido intelectual, e dizia-lhe que não era preciso justificar-se, o Vitor nem sabia o que lhe dizer.
É esta a história, não é uma grande história, mas para mim representa que houve gente que tem uma grande obra, e que também acreditou em muitas coisas em que eu quero continuar a acreditar.
Só estou a responder porque escreveste que gostas de discutir pontos de vista (diferentes). Eu também; mas não quero estar a utilizar o teu Blog para catequizar ninguém. Nem sei fazer isso bem.
Luís Neves, os teus comentários são sempre bem vindos. Quando eu digo que sou anti-comunista quero dizer que sou anti "ideias comunistas" não sou anti "pessoas com ideias comunistas". Uma das minhas maiores amigas é comunista. Não preciso de dizer mais... :-)
O debate é moral. Isto é, o combate é pela Moral. É disso que se trata. Aparentemente, é um debate impossível, ou um combate perdido, porque a ausência da tradição coloca-nos, conceptualmente, no primeiro dia do Génesis. Ora, quem nada pré-supõe nada adquire, e quem nada adquire nada evolui. Creio que não discordarás.
Onde me parece divergirmos, ligeiramente, é nos antecedentes (os causais e os circunstanciais).
A decadência está em marcha no tempo de Nietzsche e ele, como verdadeiro profeta, percebeu isso. Digo profeta porque um profeta não é um adivinho. Ele só viu o que já era visível, mas apenas aos olhos dos que verdadeiramente vêem. A Belle Époque já contém os protocolos da auto-destruição. Os regicídios quase simultâneos em toda a Europa e a Grande Guerra são factos políticos, é certo, e não são novidade, mas a interpretação que o Tempo (quero dizer, o olhar coevo) fez dos mesmos foi catastrófica. Kafka, Alban Berg, Bergson, Mornau, Fritz Lang, Eisenstein, Mann, Sternberg, Kurt Weil, Hasek, Brecht, não são acidentes históricos, mas o verdadeiro espírito de um tempo, que ainda é este (dizendo melhor, que já era o deles). É o prenúncio do Apocalipse de 39-45. A escavadora iniciara o seu trabalho.
E tu, na verdade, percebeste bem o problema quando fizeste a leitura (que subscrevo) acerca do "elitismo" de uma certa mundovisão. Não são as pessoas de hoje que são piores que as de outrora. O que mudou foi o sentido das coisas. O Bem nunca foi muito praticado e o Mal sempre andou na mó de cima. Mas todos podiam perceber isso. Hoje, isto é tudo uma treta, que há 30 anos era reaccionária (por isso, chegou a ser muito "gauche" consumir drogas e proclamar o Ho Chi Min...) e que agora é só mesmo treta, nem mesmo para consumo dos pais, que, diga-se, perderam por completo a âncora moral e nem sabem ao certo por onde começar uma conversa.
Quanto ao Marx, deve ser colocado no seu lugar. Ele não resiste à sua própria impostação das coisas. Uma análise marxista de Marx coloca-o onde? Entre os autores burgueses? Pensa bem no que ele tornou a cultura: uma doutrina de classe. Portanto, na sociedade sem classes, não haverá cultura. Nem marxismo. Foi o grande sofista. Nada do que ele afirma pode ser, portanto, contraditado definitivamente, porque ele remete tudo para o fim dos tempos. Em Marx, não há História, há apenas fim. Eu sei que o Marx costuma ser analisado como se não pertencesse à História, uma espécie de alien que veio cá ver isto e explicar tudo (é a sua grande semelhança com Freud). Mas ele é também um ser histórico e quando afirma que os filósofos devem deixar a interpretação para passarem à acção está a viciar os dados. Corrijo. Ele está a ser apenas ele próprio. Mas os marxistas tiraram-no da História (por sugestão do próprio) e passaram à acção. Como seria de esperar, acabaram por encontrar na tela o quadro que pintaram.
Não duvido de que o movimento de decadência é, em parte, guiado − não são precisos pedais, basta um volante. Creio, mesmo, que a "Globalização" é, essencialmente, uma questão moral. E digo isto porque - confesso, sem mágoa! - ou eu sou mais estúpido do que penso ou a Globalização “não existe”. Eu explico. A planetização das coisas já tem algum tempo e muita reflexão. Desde que a televisão chegou a todos os cantos, já lá vão uns 40 anos, que toda a gente fala de revolução tecnológica e de que estamos todos ligados e blá blá...
Pois é. Mas só quando aqueles tipos que ninguém conhece e que pertencem à Trilateral e ao Bilderberg e ao G7 e à OMC (e… seja lá ao que for…) se reuniram, em meados da década de 90, para fechar um acordo mundial que imporia aos Estados as políticas e as leis, de acordo com o que eles chamam "desenvolvimento do comércio mundial", é que a palavra "globalização" saltou para a frente. A princípio, pareceu-me uma daquelas idiotices verbais, na linha do "é assim" ou do "'tás a ver?", mas, aos poucos, percebi de que se tratava: da cuidadosa invenção de um termo oco e bojudo, onde cabe tudo o que alguém lá puser, tipo albergue espanhol. Há fome? Há desemprego? Há terrorismo? É a Globalização!...
Portanto, a Globalização não é o fenómeno, mas a palavra que anestesia a interrogação sobre os fenómenos. Sem interrogação, não há crítica. Sem crítica, não há razão. Sem razão, não há moral.
Quem comanda?
Não sei, embora tenha algumas teorias congeminadas.
Mas sei que chegou o "comunismo branco": fim do Estado, do dinheiro, da privacidade bancária, da livre iniciativa, da reserva da vida privada, das fronteiras, das classes, das ideologias, da religião...
É o “big brother”. Marx não desejaria melhor!
Quanto ao mais, acho a tua análise esclarecida q. b.
F. do Valle, 27.10.2008
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