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28 dezembro 2010

Dies irae

Já há muito tempo que ando a pensar em escrever sobre isto mas as recentes declarações do Senhor Presidente da República, sobre a necessidade de não insultar os mercados, decidiram-me.

É minha convicção que a religião está na natureza humana. Não sei porquê, não tenho qualquer explicação racional para isso, não sei em que zona do cérebro ou em que subtil registo do nosso código genético se encontra essa peculiaridade exclusivamente humana mas é um facto observável que o homem precisa de religão e, mesmo quando não a tem, arranja algo que a substitua.
Jesus de Nazaré, cujos seguidores chamaram Cristo, teve essa intuição - ou essa sabedoria. Disse que não se podem servir dois senhores sendo esses dois senhores Deus e o dinheiro. Ou um ou outro. Quem não serve Deus, serve o dinheiro. Também no Antigo Testamento a condenação da idolatria tinha esse carácter de contraponto: os que adoravam o Deus único e os que adoravam os ídolos. Mas adora-se ou idolatra-se sempre algo ou alguém: seja uma religião monoteísta, seja uma qualquer forma de idolatria, está sempre lá qualquer forma de adoração (ou de alienação) que nos afasta da simples vivência canina do caça-come-dorme. Não tenho explicação para isto.

É um facto que vivemos numa sociedade laica. Na Constituição está consagrada a liberdade religiosa mas não existe uma religião oficial. Ou será que existe?

A avaliar pelo que estamos a atravessar, parece que sim. Depois de décadas de laicismo, começa a desenhar-se uma nova religião oficial: o Capitalismo.
Bertrand Russell dizia (não por estas palavras, pois não tenho à mão o texto) que o Comunismo é uma religião cujo deus é o Estado. E eu acrescento: nessa religião, o diabo é o Capital.
Na nova religião ocidental - o Capitalismo - o diabo é o Estado e o deus é o Mercado.

O Capitalismo é, pois, a nova religião do mundo ocidental, já cansado de viver sem fés e sem crenças. E não uso a palavra religião em sentido figurado, uso-a literalmente.
A religião Capitalismo tem a sua teologia, os seus dogmas, os seus ritos, os seus sacerdotes e os seus prosélitos: tudo a que uma verdadeira religião tem direito.
O deus do Capitalismo é o Mercado. A sua teologia é a Economia (os sacerdotes-teólogos são os economistas).
A Economia tem dogmas:
O primeiro dogma é, desde logo, a existência do Mercado. Sim, a sua existência. Temos de acreditar em algo que não vemos, como num deus. O Mercado existe, é omnipresente, omnisciente e omnipotente e segui-Lo é o Caminho da Salvação.
O segundo dogma diz que o Mercado existe por si mesmo e se auto-regula não podendo nem devendo sofrer qualquer tentativa de domínio exterior. Tal como o Criador Incriado, Eterno e Necessário de São Tomás de Aquino. Quando as coisas correm mal, é porque houve tentativas (necessariamente falhadas) de O manipular.
O terceiro dogma diz que o Mercado é Bom. Não precisa de ser demonstrado, o Mercado é Bom porque só pode ser Bom. As catástrofes que provoca, a dôr, miséria e fome que propaga, a ganância e a rapina que são feitas em Seu nome, são apenas resultado do mau uso e da deturpação. O Mercado é Bom e isso não carece de demonstração. É um dogma. Como é bom, o Mercado é providente e generoso para os seus seguidores. Pelo contrário, para os Infiéis é impiedoso. Daí, dizem os sacerdotes-teólogos, não seja conveniente criticá-Lo. Sim, como o Mercado é omnisciente, sabe quando dizemos mal d'Ele, quando blasfemamos. O Mercado ira-se com as blasfémias. Quando iramos o Mercado, desabam sobre nós pragas como o desemprego.
O Mercado é caprichoso: não sabemos ao certo o que fazer para O satisfazer. Os seus desígnios são insondáveis e por isso os sacerdotes-teólogos se dedicam a estudá-Lo e a prescrutar os Seus sinais. Analisam as bolsas, como quem lê nas entranhas das aves, e fazem previsões. De acordo com essa análise, indicam os dias fasti e nefasti para investir, de acordo com critérios que só eles entendem. Tentam convencer-nos de que estes fenómenos são naturais e espontâneos embora quase todos saibamos - ou, pelo menos, intuamos - que as cotações das bolsas são manipuláveis.
O Mercado dá sinais, tem estados de espírito, reage: os sacerdotes-teólogos usam termos como "sentimento negativo" ou "sentimento positivo", "deprime-se" ou "anima-se". É preciso desagravá-Lo, pois, quando está deprimido. Defendê-Lo, criticar os que O acusam, é uma forma de O desagravar para que não se zangue ou para que tenha piedade dos pobres ignorantes (nós todos) que não sabem o que fazem nem o que dizem.
Também são necessários sacrifícios. A escolha desta palavra, que ouvimos todos os dias na boca de políticos e economistas, não é inocente. "Sacrifício" é uma palavra religiosa: significa "tornar sagrado". Assim, "dificuldades" e "privações" são apelidadas de "sacrifícios". Seriam más se não fossem sagradas. Como são "sacrifícios", são boas. Devemos aceitá-las como provações com vista a uma recompensa futura, uma Terra Prometida onde correrá Dinheiro a rodos. Claro, como em qualquer religião, é necessária a esperança numa recompensa futura, para manter a submissão, e essa recompensa é o Dinheiro.
Em qualquer sistema confessional, a proximidade entre políticos e sacerdotes-teólogos é elevada, estes estão sempre no poder, seja formalmente, exercendo cargos, seja informalmente, como oráculos e conselheiros. Esta proximidade não é casual nem circunstancial: tem um suporte teológico. É assim, dizem os sacerdotes-teólogos, porque sim, porque está certo, porque tem de se fazer política em função de Economia e de nenhum outro critério.
Na verdade, todo o Poder emana do Mercado. Não, não é do Povo, isso é uma heresia. O Poder emana do Mercado. Os dirigentes políticos têm de O seguir, de cumprir as Suas directrizes (que Ele não lhes transmite directamente mas apenas através dos Seus sinais, que os sacerdotes-teólogos interpretam).
No sistema confessional Capitalista (recordo que não existe Estado), as leis são feitas em função das indicações do Mercado, interpretadas pelos sacerdotes-teólogos. Noções como soberania e independência nacional, além de hereges, chegam a ser ridicularizadas pelo sistema confessional Capitalista. Quem sugira que as leis deveriam defender a independência nacional e os cidadãos e promover o bem comum é apelidado de socialista (sinónimo de herege, na religião Capitalista) - se tiver meios e cultura - ou de simplório e ingénuo - se for de mais modesta condição. Em qualquer dos casos, é conservador e ultrapassado.

Claro que, todos sabemos, este sistema não existe em lado algum, pelo menos implantado de forma exaustiva. Ainda existem Estados independentes, pelo menos formalmente, e a religião Capitalista ainda não é oficial. O objectivo é que um número suficiente de pessoas creiam e se submetam voluntariamente à religião e, para isso, são necessários muito proselitismo, muita alienação e muita repressão conjugados por diferentes agentes: políticos, economistas, jornalistas, comentadores. A pouco e pouco, as pessoas começam a achar normal e moralmente aceitável ser despedido sem uma causa justa, trabalhar por um salário muito inferior ao que os lucros reais do empregador permitiriam ou não ter acesso a cuidados de saúde por falta de meios para os pagar.
Mas também sabemos que, em toda a parte, mesmo nos mais violentos sistemas confessionais que a História regista, sempre houve resistências à teologia dominante. Se aqueles de nós que não andam distraídos e ainda acreditam nos valores da Liberdade, da Democracia e da Igualdade fizerem alguma coisa para os defender, a teologia Capitalista não se tornará religião oficial.
Não sei o quê, mas temos de fazer alguma coisa.

10 comentários:

Anónimo disse...

Estou de acordo no geral, mas convém não meter tudo no mesmo saco. Para alguns, o capitalismo é um fim em si mesmo, e para outros é apenas um meio para conseguir coisas mais positivas.

Ler:

http://goo.gl/lyKS

manuel cardoso disse...

Uma excelente pedrada no charco!

MCA disse...

Espectivas, só confirma o que escrevi. É precisamente disso que os prosélitos do Capitalismo nos querem convencer: de que se trata de um meio para conseguir coisas mais positivas para todos nós. O que carece de demonstração...

Paula Sequeiros disse...

a hipocrisia da analogia está muito bem desmontada. há realmente que fazer alguma coisa. a começar pelo nosso dia a dia, onde é mais difícil. nos nossos locais de trabalho, nos círculos de amigos. a crise profunda pôs a nu o que nadava escondido. já não há nenhum «manto diáfano de fantasia». que esta revolta se canalize para a superação deste sistema que, esse sim, é obsoleto e recesso, mas não cairá por si.

MCA disse...

«Não cairá por si». É isso que me preocupa.

Professor disse...

Estou sem palavras. Esse Deus absoluto que descreve tão bem, tem como o dos Hebreus um poder terrível e eles próprios reconheciam que JAVÉ era ciumento e vingativo...
Tenho muito medo que à semelhança do cristianismo ( Invenção de Paulo, não de Jesus), algum epifenómeno capitalista transubstancie o Mercado como aquela pequena seita herética que os Romanos desprezavam, em Religião Única e Obrigatória do Império, como sancionou Constantino. Magnífico o seu texto, querida Maria Clara.

PJA disse...

Um texto bem escrito, como é habitual, para uma analogia de que discordo, parcialmente. Precisaria de escrever um texto igualmente extenso para apresentar a minha discordância.
"E eu acrescento: nessa religião, o diabo é o Capital.
Na nova religião ocidental - o Capitalismo - o diabo é o Estado e o deus é o Mercado."
É neste parágrafo que começo a divergir mais acentuadamente.
Infelizmente, não tenho tempo para escrever mais.
Pode ser que, se não for extemporâneo, ainda aqui venha apresentar a minha (anti)tese.

MCA disse...

Quando vi que tinha mais um comentário adivinhei que eras tu. Há um timing...
Vá lá, não discordas totalmente... Quanto à analogia, já penso nisto há bastante tempo e a minha analogia inicial não foi esta. Mas depois, pensei melhor e cheguei a esta conclusão. E não é irrelevante, já que isto não é um mero exercício de retórica. Em todo o caso, fico à espera da tua antítese.

PJA disse...

Não tive tempo para melhor explicitação do que penso. Ainda assim, aqui vai.
A minha divergência resulta de uma velha discussão acerca do papel do Estado, pois não vejo essa antinomia entre o capital e o Estado. Tu acrescentaste um pormenor, talvez abusivo, ao pensamento de B. Russell.
Mas, ainda que o não seja, o que apenas concedo por retórica, não me parece que o Estado esteja diabolizado. Talvez, sim, uma certa ideia de Estado. Mas, isso, nos exactos termos em que, por analogia, o próprio capital foi excomungado (nem sempre diabolizado) por este sistema que chamas de "capitalista" (termo que aceito, por ser formalmente adequado).
Na verdade, esqueceste um aspecto fundamental da consolidação institucional dessa teologia. A igreja.
Se não houvesse igreja, tudo isso não passaria de um conglomerado de seitas em disputa por auditórios. Mas não. Existe a igreja oficial, que tudo legitima, com os seus púlpitos, as suas leis, a sua justiça, os seus arautos, os seus ritos...
Refiro-me, obviamente, ao Estado.
Todos esses sacerdotes são ou estão no Estado. É a CMVM, é o Banco Central nacional, é o Banco Central Europeu, é o Banco Mundial, é o FMI, é o M. das Finanças, é o M. da Economia, é a Lei do Orçamento, é a Lei de Enquadramento Orçamental, são as Grandes Opções do Plano, é o Conselho de Concertação Social, é o banco de capital estatal e de regime jurídico privado, é a banca nacionalizada, são as centenas de institutos públicos que estudam e re-estudam a realidade que são eles próprios, são as isenções fiscais, mas são também as extorsões fiscais...
Os donos do mundo criaram a máquina fiscal opressora para poderem continuar a acumular riqueza nos paraísos que também criaram... Bilderberg, Trilateral, CFA, ONU, etc., é tudo o mesmo.
O “chip” (que tornará obsoletos os actuais cartões, que os mesmos inventaram) é obra dos senhores do mundo, tal como a sociedade sem dinheiro e sem nações. O Estado trabalha afanosamente para acabar com o Estado, como a Igreja trabalha para preparar o segundo advento do Redentor, que será o fim desta Igreja, pois com o Deus-Vivo será dispensada a Igreja dos homens.
Mas o Estado prepara também o fim do capitalismo, que a sociedade da perfeita abundância dispensará bem esta, tão incerta e tão dependente dos favores obtidos junto... dos Mercados.
Chegará, então, o comunismo: fim do Estado, da moeda, da propriedade, da privacidade bancária, da livre iniciativa, da reserva da vida privada, das fronteiras, das classes, das ideologias, das religiões...
Marx não desejaria melhor!

PJA disse...

Complemento o que aqui deixei com uma remissão para o teu post, de um de Novembro, "O Estado da Nação (em 1871)", texto de inacreditável actualidade extraído d'As Farpas, de EQ/RO.
Em nota marginal, só um pormenor: Eça escreveu aquele texto com 26 anos, há 140 anos! Parece que está aqui connosco, e com a maturidade dos velhos... Foi um génio!