«- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O emprestimo faz-se ou não se faz? E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella questão do emprestimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episodio historico!... O Cohen collocou uma pitada de sal á beira do prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar absolutamente. Os emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensavel, tão sabida como o imposto. A unica occupação mesmo dos ministerios era esta - cobrar o imposto e fazer o emprestimo. E assim se havia de continuar... Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, d'esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente para a banca-rota. - N'um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusões, meu caro senhor. Nem os proprios ministros da fazenda!... A banca-rota é inevitavel: é como quem faz uma somma... Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras. - A banca-rota é tão certa, as cousas estão tão dispostas para ella - continuava o Cohen - que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos, fazer fallir o paiz... Ega gritou soffregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionaria constante; nas vesperas de se lançarem os emprestimos haver duzentos maganões decididos que cahissem á pancada na municipal e quebrassem os candieiros com vivas á Republica; telegraphar isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a banca-rota estalava. Sómente, como elle disse, isto não convinha a ninguem. Então Ega protestou com vehemencia. Como não convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! Á banca-rota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um paiz que vive da inscripção, em não lh'a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingança - o primeiro cuidado que tem é varrer a monarchia que lhe representa o calote, e com ella o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, d'essa collecção grotesca de bestas... A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens d'ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e patetas, - mas tambem homens de grande valor! - Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. Você deve reconhecel-o, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, ha talento, ha saber. E, lembrando-se que algumas d'essas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber.»
(Queirós, Eça de - Os Maias)
3 comentários:
«E, lembrando-se que algumas d'essas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber.»
É aqui que reside o busílis da questão.
Este último período da sua citação tolhe-nos, a nós portugueses, toda a vontade de resolver de vez o problema. Somos tão poucos que todos temos amigos entre os algozes que nos assassinam!
Este excerto apanha muito bem "a coisa", daí a sua actualidade,o Eça bem sabia de que falava. Quanto à edição que estás a citar, podes fornecer mais detalhes?
"Saquei-a" da net e tenho-a em pdf...
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