Em resposta a este texto, publicado no blogue Letras e Conteúdos, do Deputado do PS, Acácio Pinto, escrevi, na sua caixa de comentários, a seguinte resposta:
Sr. Deputado,
A sua opinião está, certamente, claríssima, no artigo, e penso que não poderia discordar das suas conclusões se fossem verdadeiras as premissas que as sustentam. Permita-me, no entanto, e com todo o respeito, demonstrar-lhe que não são.
Começa o Senhor Deputado por afirmar que «o acordo inicial remonta a 1990 e o segundo protocolo modificativo de 2004 foi aprovado na Assembleia da República em 2008 (com 3 votos contra!). Isto é, houve quase duas décadas para o debate se travar e, praticamente, o pleno dos deputados aprovou-o.»
Sendo este facto inegável, a aprovação pela Assembleia da República não é, por si só, garantia da bondade de uma decisão. De resto, como o Senhor Deputado sabe tão bem como os restantes portugueses, se tem estado atento a esta matéria, a contestação vem de muito longe, desde antes de 1990, embora os meios de comunicação social só recentemente estejam a dar-lhe dimensão mediática.
Quanto à pergunta que coloca «será que foi preciso Vasco Graça Moura chegar ao CCB, e desautorizar o primeiro-ministro, para que este assunto voltasse à ribalta?», se o Senhor Deputado tem acompanhado esta matéria, sabe também que, desde meados da primeira década deste século que se multiplica a contestação na Internet e que desde 2008 que circula uma petição em papel relativa a uma ILC contra o Acordo Ortográfico. Quero ainda lembrar o Senhor Deputado que a vulgarização da Internet não é dos anos 80 nem dos anos 90 e é perfeitamente natural que, só nos últimos anos, a contestação tenha atingido a dimensão que lhe conhecemos hoje.
Diz em segundo lugar, V.Ex.ª que «há que considerar que não é com duas ortografias oficiais da língua portuguesa que atribuímos verdadeira universalidade e prestígio ao português no mundo, nomeadamente nas instituições e nas academias internacionais, para além de que uma grafia comum na CPLP abre novas oportunidades ao mercado da edição em português.»
Embora não esteja demonstrada a perniciosidade de diferentes ortografias para o prestígio de uma língua (veja-se o caso do Inglês cujas ortografias oficiais diferem substancialmente nos dois lados do Atlântico não deixando por isso de ser, hoje, a língua franca em todo o globo), poderia até reconhecer algumas vantagens nessa ortografia única. Acontece, Senhor Deputado, que para prejuízo desse argumento concorre o próprio Acordo Ortográfico. Com efeito, as ortografias de um e outro lado do Oceano continuam a ser tão diferentes (ou até mais) do que já eram. Dou-lhe apenas três exemplos: as grafias diferentes "facto" (Portugal) e "fato" (Brasil) continuam a existir e as grafias anteriormente iguais "recepção" e "perspectiva" passam a escrever-se de forma diferente já que, no Brasil, ambas as duplas etimológicas "pç" e "ct" são distintamente articuladas na linguagem oral.
Argumenta V.Ex.ª, em terceiro lugar, que «temos que ter em conta que qualquer língua é uma entidade em permanente construção e evolução e em nenhum momento ela cristaliza.»
Neste ponto não poderia estar mais de acordo com o Senhor Deputado embora eu extraia desta afirmação, precisamente, a consequência inversa: é certo que a língua, enquanto entidade cultural imaterial, é uma realidade viva e em constante mutação. Daí lhe vem a sua riqueza e a sua fertilidade. Mas, Senhor Deputado, a língua muda naturalmente, não muda por decreto. São os falantes e os escreventes da língua que a mudam legitimamente. Os linguistas, em geral, e os lexicógrafos, em particular, recolhem e inventariam as formas da oralidade e da escrita, integrando-as nos dicionários, vocabulários e prontuários. As palavras e as formas vão caindo em desuso, outras surgem, coexistem durante anos acabando as primeiras por se tornar arcaísmos que já só constam de dicionários históricos e etimológicos e as últimas por entrar na língua corrente, oral e escrita. Isto é a evolução de uma língua viva.
Apela ainda, V.Ex.ª, para que «Não tenhamos, pois, medo desta mudança que visa aproximar a grafia da articulação fonológica». Não posso concordar. Quando se pretende que "recessão" e "receção" se leiam de forma diferente não estamos a aproximar a grafia da fonética já que deixa de haver qualquer elemento na escrita que nos diga como a palavra se pronuncia. É certo - já ouvi esse argumento - que já há outras palavras que se escrevem da mesma forma e se pronunciam de forma diferente mas este acordo, ao invés de as diminuir, vem multiplicá-las.
Escreve, também, que «já no passado também houve alterações, neste como noutros aspetos, também contestadas à época, mas que foram absorvidas pelos escreventes». É verdade! Mas nessa passado a que se reporta vivíamos em Ditadura e num país com mais de 80% de analfabetos. Felizmente, vivemos num país livre, onde V.Ex.ª pode ser Deputado e onde eu, neta de operários e camponeses, pude tirar uma Licenciatura, um Mestrado e o que eu mais for capaz.
Afirma, em quarto lugar que «depois de cem anos de divergências ortográficas (desde o acordo de 1911 que não foi extensivo ao Brasil) e depois de várias tentativas goradas de acordos envolvendo a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Lisboa de Ciências (1931, 1943, 1945, 1971/1973, 1975 e 1986) foi finalmente encontrado um texto comum que, podendo ter lacunas, é um acordo internacional e um acordo é, em si mesmo, um facto que encerra convergência, que é positivo e que importa, portanto, enfatizar.» Creio já lhe ter demonstrado que, indpendentemente das possíveis vantagens de um bom acordo, este, em concreto, não foi bem conseguido.
«Em quinto lugar, incluo-me no lote daqueles que acham que o “alfa e o ómega” da evolução da língua não se atingiu nas gerações passadas, mas também não se atinge na nossa… Ou seja, parafraseando Galileu, “porém, ela move-se”.» Totalmente de acordo, Senhor Deputado, quando dizemos que a língua evolui, isso não pressupõe qualquer espécie de desrespeito pelas formas como usaram a nossa língua Fernão Lopes, Camões, António Vieira, Machado de Assis, Aquilino Ribeiro, Jorge Amado, Agualusa, Mia Couto ou Saramago. Outros virão, no futuro, e escreverão de outras formas, todas excelentes e todas motivo de orgulho para os luso-falantes que nos sucederem.
Mas, insisto, essa evolução que fez e continuará a fazer da História da Língua Portuguesa uma das mais belas e ricas de todas as línguas do mundo, tem de ser natural e tem de partir dos que a falam e a escrevem.
Permita-me terminar com uma simples alegoria: conhece porventura, V.Ex.ª, Procusto, a personagem da mitologia grega que obrigava os seus hóspedes a caber perfeitamente na cama que lhes oferecia: aos mais baixos, esticava os membros, aos mais altos, amputava-os. O Acordo Ortográfico é uma espécie de cama onde os Senhores Deputados e todos os Governos das últimas décadas têm tentado deitar a nossa Língua Pátria. Não permitiremos a sua amputação.
De V.Ex.ª atentamente,
Maria Clara Assunção