Questões prévias de Direito Internacional Público
O n.º 1 do 2.º Protocolo modificativo ao Acordo Ortográfico, assinado em 2004, que deu nova redacção ao artigo 3.º do AO, que determinou o modo de entrada em vigor apenas com as ratificações de 3 Estados, substituindo a regra da unanimidade, é ilegítimo no plano do Direito Internacional, por falta de causa.
Com feito, uma contradição teleológica entre o objectivo proposto pelo Acordo Ortográfico – “um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa” (1.º parágrafo do Preâmbulo, reiterado no 4.º parágrafo do 2.º Protocolo Adicional), conforme consta do próprio título (“Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa”) e da exigência de um “vocabulário ortográfico comum” (artigo 2.º do AO) -, não são atingidos, se bastassem as ratificações de 3 Estados de língua oficial portuguesa, no total do universo de 8.
Todavia, esse vício de falta de causa é ininvocável por parte de Portugal, uma vez que ratificou a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969 (cfr. artigo 42.º).
Julga-se haver também uma fundamentação incongruente no Preâmbulo do 2.º Protocolo modificativo.
A inexistência de um vocabulário ortográfico comum não preclude a vigência da totalidade das normas do Acordo. Todavia, algumas das disposições do AO não têm precisão suficiente, a ponto de delas não se poder extrair uma norma (por exemplo, alguns casos das “facultatividades”, constantes da Base IV, n.º 1, que remetem para o “critério da pronúncia”).
O “vocabulário ortográfico comum”, nos termos dos Direito dos Tratados, não serve, de todo, para alterar o Acordo Ortográfico, “acomodando” as diversidades linguísticas dos vários países (diversamente da pretensão formulada por alguns Estados e constante do ponto III.5 do “Resolução sobre o Plano de A[c]ção de Brasília”, de 2010).
O prazo de transição de seis anos, previsto no artigo 2.º, n.º 2, da Resolução n.º 35/2008, da Assembleia da República, de 29 de Julho, e Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, da mesma data (que procederam à ratificação do 2.º Protocolo), constitui, materialmente, uma reserva ao Tratado, ultrapassando a qualificação de uma mera “declaração interpretativa”. O prazo de transição não serve juridicamente para promover alterações ao tratado, “a posteriori”, à margem de um novo acordo solene entre os Estados.
O Governo fez o depósito da ratificação em 13 de Maio de 2009, tendo, todavia, o aviso de tal ratificação sido publicado em 17 de Setembro de 2010 (através do Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 255/2010). Deste modo, o início do prazo de transição começou aquando da publicação referida, de 2010.
O prazo de transição terminará somente em 17 de Setembro de 2016, e não no ano de 2015, diversamente do que tem sido veiculado. O desrespeito pelo AO – ficcionando que seria válido – tem uma dimensão que, em teoria, poderá ser expressa em sanções, designadamente disciplinares.
1. Vícios formais e orgânicos
O n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro (que determinou a antecipação parcial do prazo de transição, mandando aplicar o Acordo Ortográfico à Administração Pública directa, indirecta e autónoma), é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, pois regulamenta, a título principal, direitos, liberdades e garantias.
A invocação da base habilitante do artigo 199.º, alínea g), não procede.
A mesma norma padece de inconstitucionalidade formal a duplo título: por violação da reserva de lei parlamentar (artigo 165.º, n.º 1, alínea b)) e por carência da forma de decreto regulamentar, constitucionalmente exigida para os regulamentos independentes (artigo 112.º, n.º 6).
O âmbito de aplicação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, mesmo que fosse válida, não poderia abranger outros órgãos, como a Assembleia da República, o Presidente da República e os tribunais.
Mesmo se fosse um regulamento válido, a Resolução n.º 8/2011 não poderia ser aplicada a órgãos exercendo outras funções jurídicas do Estado diversas da administrativa; havendo, pois, inconstitucionalidade orgânica e material, por usurpação de poderes, e também formal, da norma do n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros (bem como do n.º 1 da Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores n.º 83/2011, de 6 de Junho, na parte em que se refere aos decretos legislativos regionais e demais actos não incluídos na função administrativa, publicados no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores). O desvalor jurídico associado é o da inexistência jurídica.
Salvo em relação ao artigo 119.º, n.º 1, alínea h), 1.ª parte, da Constituição, a antecipação do fim do prazo de transição, nos termos em que foi realizada, por uma Resolução do Governo, aprovada em Conselho de Ministros, é inconstitucional a título orgânico, formal (devido ao acto não assumir a forma devida) e material (por violar o princípio da separação de poderes).
Regista-se inconstitucionalidade orgânica e formal dos números 3 e 4 da Resolução do Conselho de Ministros, pois regulamentam aspectos principais que são objecto da reserva de competência da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b)): os manuais escolares, que cabem na liberdade de divulgação de obra científica, artística ou literária (artigo 42.º, n.º 2), bem como na liberdade académica (artigo 43.º, n.º 1).
O número 7 é organicamente inconstitucional, por regulamentar o direito à língua, a liberdade de expressão, em particular, a liberdade de divulgação de obra científica, artística ou literária (artigo 42.º, n.º 2).
Todos os diplomas, que se basearem na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, padecem de inconstitucionalidade consequente; designadamente os seguintes:
i) Actos da função legislativa, emitidos pela Assembleia da República, decretos-leis, emitidos pelo Governo, ou decretos legislativos regionais, emitidos pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas;
ii) Actos da função política, emitidos pelo Presidente da República; Resoluções emitidas pela Assembleia da República ou pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas; restantes actos de outros órgãos;
iii) Actos da função jurisdicional, emitidos pelos tribunais.
2. A violação do património cultural imaterial que é a língua portuguesa
O AO viola aspectos nevrálgicos da língua portuguesa, enquanto pertença ao património cultural.
O Acordo oblitera as raízes greco-latinas da língua portuguesa.
As “facultatividades” representam a destruição do conceito de ortografia.
Existe a violação do dever estatal de defesa do património cultural (artigo 78.º, n.º 2, alínea c)) e do direito ao património cultural.
Há uma tentativa de usurpação do papel da lei positiva em relação ao costume e à tradição linguística existente do português europeu.
O valor da estabilidade ortográfica é violado.
Detecta-se também inconstitucionalidade material, devido à violação da garantia institucional da neutralidade ideológica e consequente proibição do dirigismo estatal da cultura (artigo 43.º, n.º 2), uma vez que o Acordo Ortográfico é puramente político, não sendo baseado na ciência linguística nem em pareceres técnicos.
O Acordo Ortográfico consiste num autêntico plano totalitário de unificação aparente, expressando um fenómeno de “democracia totalitária” por parte do Estado “abafante” relativamente à sociedade civil.
3. A ortografia na Constituição
3.1. A ortografia da Constituição instrumental não pode ser alterada através de actos infraconstitucionais
Uma das consequências de a Constituição instrumental ser rígida é a impossibilidade de proceder a alterações através de textos com valor infraconstitucional (legislativos ou outros).
Uma correcção ortográfica da Constituição, segundo o Acordo Ortográfico de 1990, é inadmissível sob o ponto de vista da hierarquia de fontes.
Quanto a precedentes históricos, entre 1911 e 1912, não houve uma única edição que revisse tacitamente a Constituição instrumental.
A partir de 1913 até à Revolução de Dezembro de 1917 e na segunda vigência da Constituição, de forma ininterrupta, ocorreu a revisão tácita da Constituição instrumental de 1911, tendo sido cimentada através da utilização da nova ortografia nas leis de revisão constitucional.
No caso da revisão de 1945, a revisão tácita da Constituição só aconteceu, de forma consistente e ininterrupta, a partir de 1952, cerca de quase 7 anos após a publicação da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945.
Quanto à mini-reforma ortográfica de 1973, oficialmente, não houve revisão tácita da Constituição.
Os precedentes históricos não são totalmente significativos e, por conseguinte, decisivos para a actual conformação dogmática da ortografia na Constituição de 1976.
A linguagem escrita e a ortografia nela contida devem ser objecto de valorização. A língua escrita não é apenas um sistema simbólico de segunda ordem: a literacia acarreta uma mudança radical na estrutura das comunidades. Sem literacia, não há Estado, não há civilização, não há nação, não há filosofia, não há ciência e não há memória social e cultural de longo prazo: sem escrita, não haveria religiões do Livro, nem haveria discurso científico e filosófico.
A ortografia permite codificar, sistematizar e estabilizar a língua escrita padrão de uma sociedade complexa; a ortografia é parte integrante da língua.
Sem ortografia, não há continuidade cultural intergeracional estável.
As disposições da Constituição instrumental são intocáveis; só podendo ser alteradas licitamente mediante o exercício do poder de revisão constitucional.
Não são apenas as “normas”, no sentido tradicionalmente entendido, que vinculam — também os preceitos constitucionais devem ser tidos como intangíveis.
O artigo 2.º, n.º 2, da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, que determina que quaisquer reedições terão de ser feitas segundo o Acordo Ortográfico, é orgânica e materialmente inconstitucional, pois se refere, também, à Constituição instrumental.
O texto oficial que faz fé é o aprovado em 2 de Abril de 1976, com alterações posteriores.
Deve distinguir-se entre “força da Constituição” e “força normativa da Constituição”.
As teorias múltiplas e díspares sobre o que seja a “Constituição material” devem ser rejeitadas. Não existe um critério “ratione materiae” para determinar os conteúdos de uma Constituição, mas apenas critérios tendenciais (e, por conseguinte, desprovidos de universalidade).
A Constituição moderna é definida, sobretudo, através da forma e, apenas tendencialmente, pelo conteúdo, de regular o Estado-poder.
3.2. A inconstitucionalidade resultante de desconformidades ortográficas com a Constituição instrumental
No pressuposto do princípio jurídico de a variante consagrada pela Constituição Portuguesa ser a do português de Portugal, temos mais inconstitucionalidades de carácter formal e material.
No caso de a Constituição grafar uma expressão com certa ortografia, existe inconstitucionalidade formal a duplo título.
3.3. As posições jusfundamentais dos particulares face à ortografia: entre o princípio da liberdade e dever fundamental de não atentar contra o núcleo identitário da língua portuguesa
Há que ter em conta a previsão do dever fundamental de preservar, defender e valorizar o património cultural (artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte), de que a língua portuguesa faz parte.
A “aplicabilidade directa” dos deveres fundamentais – autónomos ou não autónomos – depende da densidade da norma.
Os deveres fundamentais, sobretudo os que têm uma componente negativa – v. g., o dever de não atentar contra o património cultural – devem ser considerados directamente aplicáveis.
Existe um dever fundamental com uma dupla vertente: i) em sentido negativo, um dever de abstenção da prática de actos lesivos do núcleo identitário da língua portuguesa; ii) um dever positivo de impedir a destruição da mesma.
Várias normas do Acordo Ortográfico desfiguram a língua portuguesa. O expediente das “facultatividades” figura nesse âmbito.
Existe um dever de todos os particulares desobedecerem às normas mais aberrantes do AO, desfiguradoras do núcleo identitário das normas ortográficas costumeiras de língua portuguesa.
3.4. Ortografia e revisão constitucional
A Constituição instrumental não pode ser alterada, através de uma lei de revisão constitucional, segundo o Acordo Ortográfico, por atentar contra limites materiais de revisão: o princípio da identidade nacional e cultural; o “direito à língua portuguesa” e o direito à identidade cultural, bem como o princípio da independência nacional (devido às remissões para usos e costumes de outros países, para se apurar quais as normas resultantes de algumas disposições do AO, que remetem para o critério da pronúncia).
Mesmo que esta tese não fosse seguida, uma revisão constitucional que modificasse os preceitos da Constituição, em conformidade com o Acordo Ortográfico, não poderia ter efeito convalidatório das normas inconstitucionais anteriores.
4. Restantes inconstitucionalidades materiais
4.1. Inconstitucionalidades materiais das normas constantes do Acordo Ortográfico e das Resoluções da Assembleia da República, do Conselho de Ministros (bem como do n.º 1 da Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores n.º 83/2011, de 6 de Junho; do n.º 1 da Resolução da Assembleia Legislativa Regional dos Açores n.º 7/2012/A, de 24 de Janeiro)
Quanto a outras inconstitucionalidades materiais, temos:
- a violação da “autorização constitucional expressa”;
- restrições, não credenciadas pela Constituição, ao direito à língua e à liberdade de expressão;
- violação do princípio da identidade nacional;
- violação do princípio da igualdade;
- violação do direito ao desenvolvimento da personalidade;
- violação do dever de o Estado informar os cidadãos sobre os assuntos públicos (artigo 48.º, n.º 2);
- violação da regra da proibição de censura (artigo 37.º, n.º 2);
- violação da liberdade de criação artística e cultural (artigo 42.º, n.º 1); os Autores têm o direito de preservar a sua própria opção ortográfica;
- violação da proibição de dirigismo político na educação (artigo 43.º, n.º 2);
- a liberdade de aprender e de ensinar (artigo 43.º, n.º 1);
- violação das vertentes científica, pedagógica e administrativa da autonomia universitária (cfr. artigo 76.º, n.º 2 da CRP);
- violação o direito ao ensino e à cultura (artigos 73.º e 74.º, n.º 1); - violação da liberdade de imprensa;
- violação do direito à informação do consumidor.
4.2. Cumulação dos vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade
O “Vocabulário de Língua Portuguesa” e o conversor “Lince”, previstos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, padecem de inconstitucionalidades várias:
i) Inconstitucionalidade material, por violação do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte;
ii) Inconstitucionalidade orgânica, por regulamentar direitos liberdades e garantias (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea b));
iii) Inconstitucionalidade formal, decorrente de o diploma ser uma resolução, não assumindo a forma de lei em sentido formal (lei da AR ou decreto-lei autorizado).
Concomitantemente, registam-se várias ilegalidades “sui generis” do “Lince” e dos correctores ortográficos, por violação das próprias normas constantes do Acordo Ortográfico.
5. Consequências das inconstitucionalidades mencionadas
A Assembleia da República deve repor a normatividade violada, operando um autocontrolo da validade, fazendo aprovar uma resolução que, reconhecendo a inconstitucionalidade das normas contidas no AO e, também, na Resolução parlamentar n.º 35/2008, retire eficácia a essa, autodesvinculando o Estado português.
Devido às inconstitucionalidades mencionadas e ao consequente desvalor da nulidade, existe o poder-dever de desaplicar as normas constantes do Acordo Ortográfico e da Resolução n.º 8/2011 do Conselho de Ministros, por parte de todas as entidades públicas: Legislador, tribunais, bem como órgãos e agentes da Administração Pública.
Não existe dever de obediência por parte dos funcionários públicos, pois a ordem de respeitar o AO (ou, por maioria de razão, o “Lince” e os correctores ortográficos) padece de inconstitucionalidade, por violação de direitos, liberdades e garantias, o que origina o desvalor da nulidade daquele acto. No caso do AO, por todas as razões referidas, a ilegalidade é manifesta. Deste modo, o não acatamento da ordem, nos “casos em que não fosse devida obediência”, é insusceptível de acarretar responsabilidade disciplinar.
Os particulares gozam do direito de resistência (artigo 21.º), do direito de objecção de consciência e do direito genérico de desobediência a normas inconstitucionais.
Mais do que isso, existe um dever de desobediência, por parte dos particulares, em relação às normas mais aberrantes do Acordo Ortográfico, que desfiguram a língua portuguesa.
Até à remoção do AO na ordem jurídica, existem meios de tutela graciosa e contenciosa.
6. Demérito do Acordo Ortográfico: a violação de regras extra-jurídicas da variante do português de Portugal
O AO não assenta em nenhum consenso alargado.
O AO não serve o fim a que se destina – a unificação ortográfica da língua portuguesa.
Há múltiplos reparos que podem ser feitos, sob o ponto de vista das formulações.
O AO é um texto cheio de vulnerabilidades no domínio ortográfico. A aplicação do AO cria palavras homógrafas, fazendo com que palavras distintas sejam confundidas.
*Mestre em Direito e Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Neste artigo, constam as conclusões do nosso trabalho, Inconstitucionalidade e demérito do Acordo Ortográfico. Porque todos os Portugueses têm o direito e o dever de desobedecer às normas constantes do Acordo Ortográfico; em curso de publicação na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, volume LII, 2011. AO = “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado em 1990, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto.
(BARROSO, Ivo Manuel - O Acordo Ortográfico e a Constituição)
(BARROSO, Ivo Manuel - O Acordo Ortográfico e a Constituição)
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