Este texto saíu no i online, há um ano, e, aparentemente, já não está disponível.
Operação bem sucedida, paciente morto - António Cluny
1. É importante, quando se gosta de um livro, termos em mente que não o devemos emprestar, a não ser a quem tenhamos a certeza de que o vai devolver.
Vem isto a propósito de “História de Um Alemão”, de Sebastian Haffner, que emprestei, não me lembro a quem, e, por não encontrar em livraria um exemplar na nossa língua, vi-me obrigado a comprar uma tradução inglesa, “Defying Hitler”.
As frases que vou citar são tradução minha, a partir da referida versão, mas creio não ter alterado o sentido primacial do texto.
“No início de 1930, a Müller sucedeu, como chanceler, Heinrich Brüning. [...] Para provar o absurdo dos pagamentos devidos pelas reparações de guerra, levou-os ao extremo e conduziu assim a economia da Alemanha à beira do colapso, levando muitos bancos a fechar as suas portas e o número dos desempregados a atingir os 6 milhões. Para manter o orçamento equilibrado, o seu férreo espírito sombrio impôs o tacanho método do bom pater familias: “Apertem os vossos cintos.”
A cada seis meses, cadenciadamente, apareciam novos “decretos de emergência”, reduzindo cada vez mais os salários, as pensões, as prestações sociais e, finalmente, até mesmo os proventos privados e as taxas de juro.
Cada um destes decretos era a consequência lógica do anterior e, de cada vez, Brüning, cerrando os dentes, ia impondo essa lógica dolorosa [...]
Brüning não conseguia oferecer mais ao país do que maior pobreza, a redução da liberdade e a garantia de que não havia alternativa. Na melhor das hipóteses, a sua política consistia apenas num repetido apelo à austeridade. Os seus sucessos - e indubitavelmente teve alguns - podiam sempre ser descritos pelo seguinte slogan: ‘Operação bem-sucedida, paciente morto.’”
Sebastian Haffner não atribuiu a Brüning o aparecimento e a influência do nazismo na sociedade alemã, é claro, mas não deixa de sugerir a importância que, na vitória deste, tiveram as suas medidas económicas e financeiras, e as que, de natureza política, para as impor, limitaram as liberdades, debilitando assim a já então frágil democracia alemã.
2. Em Portugal não se vê, por ora, qualquer indício explícito do surgimento de alguma força de extrema- -direita ou movimento populista radical que possa, com sucesso, aproveitar o descontentamento que a ineficaz dureza das medidas de austeridade, aplicadas em nome da troika vêm produzindo entre os cidadãos.
Elas aparecem, contudo, cada vez mais, e aos olhos de muitos, como uma espécie de injustos “pagamentos de guerra”, de um conflito que o nosso povo não provocou nem infligiu a ninguém.
Acresce que, no nosso caso, não se pode dizer, em rigor, que a dívida ou o deficit portugueses tenham penalizado outro povo que não o nosso e, pelo contrário, começa a ser perceptível que eles têm constituído até um bom negócio para muitos interesses estrangeiros.
A memória histórica não é curta. Ainda estão vivas e activas várias gerações de portugueses que viveram sob a ditadura e sabem - têm conseguido transmitir às que lhe sucederam - que a miséria forçada e o autoritarismo não são o caminho para o fim das dificuldades actuais.
O problema não é pois, de imediato, o do regresso ao fascismo.
A angústia colectiva dos portugueses reside pois no facto de não vislumbrarem uma alternativa séria, em que acreditem e que os mobilize para pôr fim ao empobrecimento que alastra e ao desânimo que os paralisa, degradando a democracia e assinando o óbito da economia.
http://www.ionline.pt/opiniao/operacao-bem-sucedida-paciente-morto
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