MINISTÉRIO DO INTERIOR
Decreto com força de Lei de 18 de março, reorganizando os serviços das bibliotecas e archivos nacionais dependentes da Direcção Geral da Instrucção Secundaria, Superior e Especial
No interesse da Pátria e da República, urge que as Bibliotecas e Archivos portugueses operem a cultura mental funccionando, como universidades livres, facultando ao povo, na lição do livro, o segredo da vida social moderna; destruindo a ignorância, que foi o mais forte sustentaculo do antigo regime; investigando, no documento do passado, o papel de Portugal na civilização.
Pondo a população portuguesa a par da intelligencia mundial, provando scientificamente a acção social do povo que iniciou a idade moderna, pelos descobrimentos marítimos, compete ás Bibliotecas e Archivos uma das mais elevadas missões na revolução nacional.
Não é conservar os livros, mas torná-los úteis, o fim das Bibliotecas. Estabelecimentos de ensino público destinados ao progresso da intelligencia, á extensão da cultura scientifica; focos de intensa irradiação mental, quer na frequencia da sua sede, quer na leitura domiciliária, ou na expansão das collecções moveis; instituições de objectivo pedagogico, actuando pela franca e illimitada communicação com o publico; as Bibliotecas são sempre elemento de instrucção, por mais que as suas collecções pareçam dever ser apenas alvo da avara contemplação dos bibliomanos, pois que, quanto maior for a importancia das suas obras de genio, tanto maior será a acção emancipadora do pensamento, franqueando ás novas gerações o caminho do progresso incessante, a conquista de mais felicidade e de mais justiça.
Tem sido Portugal deliberadamente mantido alheio aos elementos de elevação mental que desenvolvem o esforço collectivo. O franco accesso á Biblioteca, a ampla leitura domiciliaria, as collecções moveis, as salas para crianças, a leitura no caminho de ferro, nos hospitaes e nas prisões — esse conjunto de meios que, alem de facilitar o livro, solicitam o leitor, offerecendo-lh’o em todas as condições, enviando-lh’o para todos os pontos, tem sido completamente posto á margem neste país.
Serviram em Portugal as Bibliotecas para sequestrar o livro, defendendo o povo do peccado de saber, repellindo a criança e o operario, contrariando o estudioso, trahindo o principio que manda reservar o volume raro, para impedir a leitura do livro emancipador, exercendo a censvra sobre a requisição do leitor, annullando de facto o livro, como o fazia a Inquisição, cujo crime não era destruir pelo fogo o exemplar, mas impedir pelo fogo a sua leitura.
Para o antigo regime, o perigo era pensar; para a República, o perigo é a ignorancia, crime publico, attentado contra a patria, tão prejudicial no operario como no burguês, confinando aquelle na barbara depressão da miseria, inutilizando-lhe o esforço pela incapacidade profissional e annullando este na rotina e na incultura.
Ingleses e Americanos, querendo levantar a cultura pelo self-instruction, proporcionando ao povo os meios de se instruir por si mesmo, operaram uma verdadeira revolução nas Bibliotecas. Ao tradicional conservador, cujo ideal era impedir que se folheasse o livro, substituiram o moderno propagandista, cujo orgulho profissional consiste em destruir pelo fogo milhões de volumes que, no apostolado da instrucção, se fizeram circular até completamente se inutilizarem.
Segundo o criterio dessas instituições modelares, os Palacios de Leitura, que caracterizam a nova civilização, teem um triplice fim: ensinar, informar, distrahir.
Distrahindo, facilitando a obra de entretenimento, as Bibliotecas educam para a vida mental, criando o habito da leitura, encaminhando o povo para a vida intellectual, afastando-o dos meios deprimentes, dos habitos dispersivos, dos locaes material e moralmente insalubres.
Com relação ás questões de momento, devem as Bibliotecas publicar listas de livros que possam pôr o cidadão ao corrente dos negocios publicos, habilitando-o a conhecer as leis eleitoraes, as constituições, as reformas de instrucção, os planos financeiros, tudo quanto é submetido ao seu exame pelas publicações officiais, pela discussão do Parlamento e pelo programma dos candidatos ao mandato eleitoral.
Assim, tornam se as Bibliotecas um elemento de ordem, orientando intellectualmente os cidadãos, agrupando-os pela comprehensão dos assuntos sociaes, defendendo-os da impulsão irreflectida ou da resistencia rotineira.
A Biblioteca é, pois, uma officina sempre aberta; o que representa uma economia de tempo e de trabalho, com todos os seus serviços consagrados exclusivamente ao fornecimento de livros ao publico.
Não bastam, porem, á instrucção do povo português as actuaes Bibliotecas dos grandes centros; é preciso instituir Bibliotecas Populares em todos os municipios, e fazer irradiar d’esses nucleos a corrente intellectual das Bibliotecas Moveis, que levarão os livros a todas as aldeias, engrandecendo a união da escola e tornando-a o principal centro de interesse da população.
Chamando desde já a criança á Biblioteca, prepara a Republica a nova geração consciente dos seus deveres e dos seus direitos, conhecedora de que a moderna vida social é orientada pelo livro e está expressa no livro.
Evidenciada a missão das Bibliotecas e o fira que teem em vista, procurou o Governo o meio de pôr termo á sua orientação rotineira e de apagar os traços das más administrações anteriores.
Franqueada sem restricção, a Biblioteca terá de ora ávante tal acolhimento, que o povo considerará como um prazer mental voltar ali, collaborar na vigilancia, promover doações, propagar as collecções moveis, etc. Não haverá naquele estabelecimento fins superiores ao de aumentar a leitura, fazendo irradiar o livro, quaesquer que sejam os prejuizos da sua deterioração, porque o mal irreparavel para a Patria e para a Republica seria manter a actual incultura, propositadamente conservada pelo antigo regime.
E, assim como a revolução engrandeceu a missão das Bibliotecas, de que depende o futuro; assim tambem criou aos Archivos um papel de importancia decisiva, de que depende o passado.
Urge recolher, installar, catalogar, connexar cuidadosamente, como peça justificativa do processo movido pelo povo ao regime que o opprimia, os milhares de documentos das extinctas casas religiosas, que provam o crime de entenebrecimento do povo, os montões de papeis suspeitos em que permanece o traço da dissipação.
Valerão as Bibliotecas, nesta hora de enthusiasmo, em que se torna urgente recuperar o tempo perdido, pela sua frequencia e pelas suas raridades; é aos Archivos que pertence valorizar os testemunhos de outras eras, integrando- os nas respectivas collecções.
Teremos assim Bibliotecas votadas, umas á expansão do livro, outras ao repositório da alta cultura philosophica, scientifica, literaria e artistica, e Archivos destinados aos estudos historicos, que reivindicarão o verdadeiro legado, pertencente, na historia da civilização, ao glorioso povo português.
Paços do Governo da Republica, em 18 de março de 1911 = O Ministro do Interior, Antonio José de Almeida
Diário do Governo, n.º 65 (1911, terça-feira, 21 de março)
Sem comentários:
Enviar um comentário