Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

25 fevereiro 2016

Pai

Pai, Dizem-me que Ainda Te Chamo

Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.

(Maria do Rosário Pedreira, in 'Nenhum Nome Depois')

05 fevereiro 2016

A propósito das reacções à tolerância de ponto no Carnaval

Às vezes gostava de ter o poder mágico de, por um dia (bastava um dia) acabar com toda a administração pública, todos os serviços públicos, toda a função pública. Tudo o que é Estado ou que depende directa ou indirectamente da Administração Central, Regional e Local, tudo o que é pago pelo chorado dinheiro dos contribuintes. Não só repartições públicas, escolas, museus e bibliotecas, mas também hospitais, higiene urbana, transportes, obras, cemitérios, polícia, forças armadas, manutenção de esgotos, abastecimento de água, emergência médica, bombeiros, serviços de meteorologia, parar tudo, tudo, tudo. Sem serviços mínimos, acontecesse o que acontecesse. Como se o Estado, por um dia, deixasse pura e simplesmente de existir.
Bastava um dia.