O plágio é um acto que me confunde um bocado. Não me interessa tanto o lado criminal da coisa, o poder ir preso, o acto de roubar. O que me confunde não é isso. Quando alguém rouba um pão, um televisor ou um quadro, está a apropriar-se fisicamente de um objecto para o usar para si. Passa, de factu, a possuí-lo. Roubo um pão, como-o. Poderei mais tarde pagá-lo mas já o comi. Roubo um rádio, uso-o. Ainda que venha a pagá-lo ou a ser presa por o ter roubado, possuí-o em determinado momento ou troquei-o por dinheiro com o qual pude possuir outras coisas. O mesmo para um quadro, um carro, um livro ou um colar. Há uma posse efectiva, um benefício real, palpável.
O plagiador nunca chega a possuir aquilo que plagia. Não é ele o autor e nunca será porque a autoria decorre do pensamento e o pensamento não se possui.
O que leva alguém a plagiar? Que processo psicológico estranho está por detrás do acto de plagiar? O plagiador acredita realmente que passa a ser autor daquilo que plagia? E se não acredita, plagia para quê? Não percebo.
Conheço um plagiador compulsivo. Conheci, melhor dizendo, porque, de alguém assim, quer-se distância. É um senhor de idade avançada, sofre de parkinson e, a última vez que o vi, arrastava os pés pelo chão das Amoreiras, de olhar vazio. Deu-me pena aquela figura frágil e vulnerável. Vi tudo o que ele podia ter sido e não foi por ter levado a vida a esforçar-se por fingir que era o que não é. Patético.
Quando o conheci, há uns seis ou sete anos, apenas tremia um pouco das mãos, mas o olhar era vivo e disfarçava a custo uma ambição desmedida. Ambição de dinheiro? Não. Ambição de reconhecimento. De honrarias. De beija-mão. Tinha feito, tardiamente, um doctorado em Espanha, numa universidade bastante prestigiada de Madrid. Eu li a tese dele. Má. Muito má mesmo. Daquelas que desprestigiam uma universidade prestigiada. Mas isso não parece ter interessado à universidade madrilena, que precisa de mostrar resultados quantitativos, e menos a ele interessa. Na sua inconsciência doentia, ele acha aquilo uma obra-prima. Exibe o seu "chapéu" de Doutor na fotografia do B.I. Nos cartões de visita escreveu «Cientista da informação». Faz questão de usar o grau académico em todas as ocasiões. Inunda a Biblioteca Nacional de cópias dos seus livros que ninguém publica e que não são livros nem são seus. São trabalhos de alunos que ele pede sempre em formato digital para depois imprimir com uma folha de rosto alterada na qual ele figura como autor. O resultado é, no mínimo, intrigante: é tal a diversidade temática que dir-se-ia ser este senhor um especialista em tudo. Da filosofia às ciências da informação, passando pela linguística e pela psicologia, este pobre de espírito "escreveu" àcerca de tudo. Cento e duas entradas na porbase e não tenho a certeza de que alguma seja realmente dele. Claro que, sendo trabalhos não publicados que plagiam outros trabalhos não publicados é quase impossível detectar o plágio e também prová-lo, não havendo queixa não há crime e aqueles títulos vão dando entrada, paulatinamente, na base nacional de dados bibliográficos. O certo é que vai levando a água ao seu moinho, conseguiu lugar cativo numa grande universidade lisboeta (grande em tamanho, entenda-se), tem lá os seus cargos, os seus amigos (ou aliados) e a partir de lá vai exercendo a sua influência. Pouca influência porque ninguém o leva realmente a sério, pelas costas é motivo de anedotas, mas é um "doutor" por extenso e isso é útil a algumas pessoas e à própria instituição que - cá como lá - precisa de mostrar resultados quantitativos.
Ao olhar o pobre velho, cada vez mais deteriorado pela terrível doença, senti pena dele. Apesar de ele, em determinado momento, me ter prejudicado porque eu não fui ao beija-mão e isso, para ele, é imperdoável. Apesar disso, senti pena. Eu tenho quase 40 anos e um mestrado feito em Portugal, com o meu esforço e com o dispêndio dos meus poucos e fracos neurónios, mas tenho o respeito dos meus colegas e, principalmente, o respeito de mim mesma. Ele tem o seu doctorado feito sabe-se lá como, o seu "chapéu" engraçado, os seus cartões de visita e... cento e duas entradas na base nacional de dados bibliográficos, referentes a "livros" que plagiou a alunos de licenciatura.
Compulsivamente, mesmo quando já toda a gente sabia que ele plagiava os alunos, ele continuava a fazê-lo. Só em 1997, enviou para BN vinte e sete títulos (o que dá uma produção superior a dois por mês), em 1998, dez e em 2000, vinte e três. Não sei se foi a doença ou se alguém na universidade lhe chamou a atenção mas, desde 2001, não consta nada deste senhor na base nacional.
Por muitas voltas que eu dê à cabeça - eu sei que os neurónios são poucos mas... - continuo sem perceber o que levou este senhor a plagiar. O que leva alguém a plagiar.
Voltarei ao assunto.
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5 comentários:
Uma academia que se prezasse teria registo automático das obras dos alunos e docentes, que serviria para prevenir não só estas situações, como as situações em que os alunos decidem copiar de outrem. Hoje em dia, esta tecnologia de arquivo e cruzamento de informação é banalíssima...
Um destes dias também encontrei o referido senhor à entrada de uma estação de metro. Disse-lhe a instituição à qual estava ligado, e ele, prontamente, me respondeu que também foi convidado para lá.
E lembrei-me dos dias tristes, muito tristes mesmo, em que um projecto científico se desmoronou (ou se reorientou para outro sentido) por causa dele e de pessoas que borboletavam à sua volta.
Bem, não me parece assim tão simples. Não conheço nenhuma Universidade (pelo menos em Portugal) onde se faça esse tipo de controlo. O aluno entrega o trabalho ao professor, o professor avalia, o trabalho, por vezes, fica em casa do professor, outras vezes é arquivado (em papel) no departamento. Se o aluno entrega em disquete ou em CD e o trabalho não estiver cadeado contra cópia ou impressão, como é que se controla? O que este senhor fazia era imprimir com nova folha de rosto e mandar para a BN, como oferta. Quem é que controla? Não é assim tão fácil. E basta ver como, mesmo com as teses, cada vez há mais plágios...
Rogério
Obrigada pela sua visita. Quanto a esse senhor e à resposta que lhe deu, não me surpreende. É típica. Ele tem uma auto-imagem absolutamente delirante. Quanto a projectos antigos, olhe, costuma-se dizer que Deus escreve direito por linhas tortas. Quem sabe se não foi melhor assim? Nunca saberemos. Só sei que "aquilo" não era ambiente e estava a fazer-me mal.
o plágio é roubar algo bastante pessoal: o fruto da nossa criação intima.
o plagiador é uma forma cobarde de ser ladrão.
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