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10 janeiro 2007

As razões da escolha IV

Um argumento usado pelos defensores do Não no referendo ao aborto é o da absoluta igualdade de direitos e de dignidade do bebé nascituro em relação ao nascido. É um argumento frágil. Tendo, certamente, vastas razões de defesa sob um ponto de vista médico, tem algumas fragilidades culturais e é discutível, mesmo no terreno dos defensores mais radicais do Não.
Ainda que, numa abordagem puramente médica, o ovo ou zigoto (primeiros dias), o embrião (até à 8ª semana), o feto (a partir da 9ª semana) e o bébé sejam todos seres humanos em distintas fases do seu desenvolvimento (aliás, muito mais próximos entre si do que um recém-nascido de um adulto), numa abordagem instintiva e cultural, há uma diferença que se intui mas não se explica.
É por essa razão que não é obrigatório registar uma gravidez logo que ela é conhecida. É ainda por essa razão que o DIU e a pílula do dia seguinte (que, como toda a gente sabe, são métodos abortivos) não são proibidos.
Coerente, como sempre, a Igreja condena estes métodos mas a nossa cultura não os condena. Quer o DIU quer a pílula do dia seguinte actuam num momento imediatamente posterior à concepção, antes da nidação do ovo ou zigoto. A fecundação dá-se mas o zigoto, nos dias seguintes à concepção, não consegue instalar-se no útero e é expulso por métodos naturais. A mulher não chega, verdadeiramente, a ficar grávida, e a literatura dessas pílulas ressalva, expressamente, que a pílula do dia seguinte «não é eficaz numa gravidez já iniciada». Há concepção mas não há gravidez, portanto.
É com base nesta diferença intuitiva que os defensores moderados do Não aceitam todos os métodos contraceptivos e ainda o aborto em casos justificados.
O facto de haver esta diferença intuitiva não significa, porém, que haja uma clivagem total entre um zigoto, um embrião, um feto e um bebé já nascido. É uma clivagem desse tipo que serve de argumento aos defensores do Sim: segundo eles, «o feto ou embrião ainda não é vida humana». Os defensores moderados do Não defendem, pelo contrário, que, desde o momento em que se inicia a gravidez, o embrião ou feto deve gozar de direitos mas que esses direitos aumentam ao longo do seu desenvolvimento. Quanto a direitos exactamente iguais e a uma dignidade exactamente igual, essa posição, defendida em teoria pela Igreja e por muitos católicos, não é exercida, na prática, nem pela Igreja nem pelos católicos: alguma mulher católica que sofra um aborto espontâneo se lembra de fazer o funeral ao seu feto? ou de baptizá-lo se a gravidez estiver em risco?

As razões da escolha III
As razões da escolha II
As razões da escolha I

6 comentários:

Anónimo disse...

"Coerente, como sempre, a Igreja..."
???????????

MCA disse...

Claro. Coerentíssma. Pode-se discordar, mas é coerente. Por isso é tantas vezes acusada - muitas delas, com razão - de não evoluir; a corência em excesso pode descambar para o fundamentalismo.

Orlando Braga disse...

Antes de mais, concordo com a actual lei. Não sou um fundamentalista nesta área. O mais que posso ser é um fundamentalista na luta contra a liberalização do aborto que se pretende para Portugal. E outra coisa: não sou católico, sendo cristão.

Quando uma mulher grávida faz uma ecografia e vê o seu bebé, não diz “Olha o meu feto!”; diz “Olha o meu bebé!”. Culturalmente, o feto é realmente considerado como um bebé pela mulher. O grande promotor do aborto cultural sempre foi o homem, porque as crianças e a família condicionam a sua “liberdade” de acção e pior, submetem-no -- de certa forma – ao poder do matriarcado. É através da família que o homem é “domesticado”, por vezes a muito custo.

Partimos do principio perigoso de que a ciência atingiu a Verdade e nada mais há para descobrir nesta matéria e que a classificação em embrião, feto e nascituro diferem essencialmente entre si. Encaramos isto como uma verdade absoluta.
O embrião é uma realidade física concreta, tal qual o nascituro é.

Um método só é abortivo se actuar depois da singamia. Se for tomada realmente no dia seguinte como o seu nome indica, não aborta coisa nenhuma, porque a singamia requer o seu tempo para se realizar. Se a singamia não tiver existido, não considero aborto. O problema é que se deixa passar um dia ou mais, e depois, em vez de uma, tomam “doses de cavalo” da pílula.
A pílula do dia seguinte (se tomada como prescrita por um médico) actua no processo de fertilização na sua fase “pronuclear”, antes que a singamia se verifique, como habitualmente, cerca da hora 18 do processo de fertilização. Uma mulher que tenha tido relações não corre o risco de singamia senão 18 horas depois. Portanto, não é verdade que todos os defensores moderados do “não” partam do principio enunciado no post.

O “registo” da gravidez faz-se, como se fez o registo dos nascituros desde que o homo sapiens existe: socialmente, utilizando o registo social. O homo sapiens quando apareceu, não era menos inteligente que nós, embora sem os milénios de evolução em sociedade que acumularam conhecimento. E os primeiros seres humanos registavam as suas gravidezes por anúncio, assim como não havendo registo civil para registar os nascituros, esse “registo” era feito à tribo da mesma forma: anunciando. A nossa sociedade burocratizou-se e passamos a depender de registos escriturados. Mas para mim, basta que uma mulher diga que está grávida, para que esse “registo” se tenha realizado.

A Igreja Católica, por exemplo, tem rituais fúnebres para não-nascidos. Existe mesmo em Nova Iorque, no centro de Manhattan, uma igreja católica que dá pelo nome de Church of The Holy Innocents (Igreja dos Santos Inocentes) que é dedicada às crianças não-nascidas. Só baseado neste facto, os que dizem (católicos e não católicos) que a religião católica não venera ritual, oficial e efectivamente as crianças não nascidas, não têm razão.

fernando alves disse...

Bom, em relação à pílula ser ou não ser abortiva, o Orlando já explicou bem o assunto. No entanto, acrescentaria um pormenor: a pílula do dia seguinte pode provocar uma menstruação ainda antes da fecundação e portanto deixa de ser um método abortivo se isso acontecer.

Quanto ao DIU, é mais difícil, mas explico com base na minha opinião pessoal sobre o início da vida:
para mim, a vida humana começa com a nidificação. Atribuo um valor enorme à fase pré-nidação, claro, mas é partir deste momento que, em união com o corpo da mãe, o embrião põe em prática a sua potencialidade de gerar vida humana. Até aí tinha apenas isso: potencialidade.

Esta explicação poderia "conviver" sem problemas com o DIU e a pílula do dia seguinte.

MCA disse...

Bom garfo
Obrigada pela sua intervenção. Desconhecia algumas das coisas que diz e que contribuem, em muito, para o debate que espero que seja esclarecedor.
Continue a intervir, sempre.

MCA disse...

Idem, para o Fernando Alves.
Como já expliquei no início destes posts, não quero ainda revelar - por enquanto - a minha opção de voto por isso as respostas aprofundadas aos vossos comentários acabarão por surgir, mais tarde, em posts posteriores.
Voltem sempre.