«Mais amargamente porém me lembro da noite histórica em que, no meu quarto, moido e mole de um passeio a Versalhes, com as pálpebras poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito, praguejando, um pavoroso Dicionário de Indústria em trinta e sete volume! Senti então a suprema fartura do livro. Ajeitando, com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facúndia humana... E já me estirara, adormecia, quando topei, quase parti a preciosa rótula do joelho, contra a lombada de um tomo que velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões. Com furor e um berro empolguei, arremessei o tomo afrontoso - que entornou o jarro, inundou um tapete rico de Daghestan. E nem sei se depois adormeci - porque os meus pés, a que não sentia nem o pisar nem o rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do jardim que o luar branqueava, depois na Avenida dos Campos Elisios, povoada e ruidosa como numa festa cívica. E, oh portento! Todas as casas aos lados eram construídas com livros. Nos ramos dos castanheiros ramalhavam folhas de livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com títulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça da Concórdia, avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei trepar, arquejante, ora enterrando a perna em flácidas camadas de versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de Exegese e Crítica. A tão vastas alturas subi, para além da terra, para além das nuvens, que me encontrei, maravilhado, entre os astros. Eles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos por espessas crostas de livros, de onde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre dois volumes mal juntos, um raiozinho de luz sufocada e ansiada. E assim ascendi ao Paraíso. Decerto era o Paraíso - porque com meus olhos de mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquele que não tem Manhã nem Tarde. Numa claridade que dele irradiava mais clara que todas as claridades, entre fundas estantes de ouro abarrotadas de códices, sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas espalhados por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos - o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a mão super-forte que o Mundo criara - e o Criador lia e sorria. Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro coruscante. O livro era brochado, de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.»
(QUEIRÓS, Eça de - A cidade e as serras)
A biblioteca de Jacinto (I)
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