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08 março 2007

A lei da vida (2)

O conto de Jack London é tão triste quanto belo. Mas não consigo deixar de pensar nisto: parece que a nossa civilizadíssima humanidade ocidental já esteve mais longe de fazer isto com os idosos. Pelo menos já ninguém se coibe de falar deles como um fardo pesado para a sociedade. A retórica do pragmatismo domina os discursos e é terrivelmente convincente. Começa nas questões puramente económicas como o emprego ou a reforma, passa depois às questões pseudo-humanitárias, como o aborto clandestino e chegará à eutanásia. Na Holanda este percurso já está bastante mais adiantado. É o progresso, dizem: se isto é progresso eu sou reaccionária. É moderno e inteligente: então eu prefiro ser antiquada e obtusa. É o futuro: então eu sou conservadora. Uma conservadora reaccionária e antiquada. Quem diria, logo eu!...
Já há quem escreva para quem quiser ler - étonner le bourgeois, pois então - que o conceito de "direito à vida" - consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem - é uma aberração socialista. Suponho que a liberdade de pensamento e de expressão - consagrados na mesma Declaração e graças à qual quem diz estas coisas não vai preso - também seja uma "aberração socialista"...
Não tenho dúvidas de que os conceitos derivados dos ideais da Revolução Francesa, com os quais ainda me formei (pobre ingénua!) - a liberdade individual e dos povos, a igualdade de oportunidades, a solidariedade, a justiça social, a responsabilidade colectiva, o direito à busca da felicidade, o direito à fruição da natureza e da cultura, o respeito pela diferença, a protecção aos mais fracos - não tenho dúvidas de que têm os dias contados. Nada disto é pragmático, nada disto é realista. Pragmático é mandar para a miséria 600 famílias porque a dez mil quilómetros de distância há um país (muito mais evoluído, claro) onde outras famílias trabalham o dobro por um décimo do ordenado. Realista é ver que não há dinheiro suficiente para pagar reformas a pessoas que têm o desplante e o mau gosto de esperar viver até aos 85 anos e não fazer nada para resolver isso. Pragmático é pagar o aborto a uma mulher pobre em vez de lhe proporcionar condições para criar todos os filhos que ela quiser ter. Muito pouco realista seria punir o patrão que a ameaçou de despedimento se engravidasse.

Sei que a minha velhice já não será como a dos meus pais, a dos meus sogros ou a dos pais dos meus amigos. A menos que consiga juntar muito dinheiro para me sustentar numa solidão mais ou menos opulenta, a mudança da mentalidade que já está em curso irá lançar-me a mim e a toda a minha geração, aos lobos de uma eutanásia passiva (ou activa).
Pelo menos, os esquimós eram menos hipócritas.

1 comentário:

André A. Correia disse...

Clara, mais uma vez é com muito gosto que revisito a BdJ para encontrar uma reflexão esclarecida...
Como ontem se viu no Parlamento, vamos contentes e felizes, de vitória em vitória, até à derrota final.
Todas as balizas éticas, que nos moldaram e nos fizeram crescer enquanto civilização, têm vindo a ser derrubadas por vontades (ou interesses?)que nos levarão a um final onde cada um vive no seu mundo solitário, sem apego e pertença a uma comunidade.
É o mais triste dos fins...