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01 novembro 2010

O estado da Nação (em 1871)

«Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taverna.
«Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, carrascos, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe média inteira que vive dele, de chapeu alto e paletó.
«Este caldo é o Estado. A classe média vive do Estado. A velhice conta com ele como condição da sua vida. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia da sua tranquilidade. A classe eclesiástica não significa a realização de uma crença; é ainda uma multidão de desocupados que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira, como se compreendia outrora, é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas; é a ocupação natural das mediocridades; é o usofruto da burguezia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos podem equilibrar-se. Nascem o recurso perpétuo para a agiotagem, a dívida e a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, arruina-se, quebra e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. O mesmo sucede aos industriais. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.
«Tudo é pobre: a preocupação geral é o pão de cada dia. Disto uma lei exclusiva, dominante, áspera: o egoismo. Tudo se torna meio de comer.
[...]
«A pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.
«Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder. Um governador civil dizia: –É boa! dizem que sou sucessivamente regenerador, histórico, reformista! Eu nunca quiz ser senão – governador civil! - Este homem tinha razão, porque mudar do Sr. Fontes para o Sr. Braamcamp, não é mudar de partido; – ambos aqueles cavalheiros são monárquicos e constitucionais e católicos. A desgraça é que, se em Portugal houvesse partidos republicanos, monárquicos, socialistas, aquele homem, assim como fôra sucessivamente reformista, histórico, regenerador – isto é as coisas mais iguais – seria republicano, monárquico e socialista – as coisas mais contraditórias.
[...]
«Perdeu-se através de tudo isto o sentimento de cidade e de pátria: o cidadão desapareceu. E todo o País não é mais do que: uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.
«É uma Nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura e para os domínios clericais»
(QUEIRÓS, Eça de – As farpas. Transcrito da edição original Lisboa: Typographia Universal, 1871, disponível em http://purl.pt/256)

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