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01 fevereiro 2013

A honrada Alemanha

Não resisto a transcrever um excerto de «O jogador», de Dostoievski - que estou a ler numa vetusta edição dos Livros RTP - e que me fez pensar nos tempos que estamos a viver.

«Eu preferiria - disse - passar toda a vida numa tenda de quirguizes nómadas em vez de adorar o ídolo alemão.
- Que ídolo - perguntou o general, que começava a aborrecer-se seriamente.
- O modo alemão de acumular riquezas. Não estou aqui há muito tempo mas o que pude ver e comprovar chega para revoltar o meu sangue de tártaro. Na verdade, não quero essas virtudes! Ontem tive tempo de andar umas dez verstas pelos arredores. Pois bem, é exactamente como nos livrinhos ilustrados de moral alemã: em cada casa há um Vater, terrivelmente virtuoso e extraordinariamente honrado. Tão honrado que temos medo de nos chegarmos a ele. Não posso suportar as pessoas honradas que inspiram medo. Cada um destes Vater tem a sua família e à noite, reunidos todos eles, lêem em voz alta livros instrutivos. Sobre o telhado da casa rumorejam os ulmos e os castanheiros. O Sol que se põe, a cegonha no telhado, tudo isto é extraordinariamente poético e comovedor. Se não o incomoda, general - continuei - permito-me referir algo ainda mais comovedor. Lembro-me que o meu falecido pai, também sob as tílias, diante da casa, lia-nos todas as tardes, a minha mãe e a mim, livros desse género... Posso, pois, avaliar bem tudo isso. Bom, aqui todas as famílias se encontram sob o jugo e a submissão mais completa do Vater. Trabalham como bois e acumulam dinheiro como judeus. Supunhamos que o Vater reuniu já uns tantos florins e espera legar ao primogénito o seu táler ou a sua parcela de terreno. Para isso, não dá qualquer dote à filha e esta fica para tia. Para isso vende o filho mais pequeno, como criado ou como soldado, e este dinheiro é incorporado no capital familiar. Faz-se assim, acreditem-me. Procurei informar-me. E fazem tudo isto movidos pela honradez, por um exaltado espírito de honradez, até ao ponto de o filho mais pequeno, que foi vendido, estar convencido de que o venderam movidos pela honradez. E isto é o ideal: a própria vítima alegra-se por ter sido oferecida em holocausto. Que acontece depois? As coisas também não correm de feição para o primogénito. Há ali uma certa Amalchen à qual o seu coração se sente unido. Mas não pode casar-se porque não arrolou os florins necessários para fazê-lo. Ficam também à espera, digna e sinceramente, aceitando o holocausto com um sorriso nos lábios. Amalchen continua extenuada e fraca. Finalmente, ao cabo de vinte anos, os bens foram multiplicados: dispõem dos florins honrada e virtuosamente poupados. O Vater dá a bênção ao primogénito, de quarenta anos, e à Amalchen, de trinta e cinco, peitos flácidos e nariz avermelhado. Chora, dá-lhes conselhos e morre. O primogénito transforma-se, por sua vez, num virtuoso Vater e a sua história volta a repetir-se. Aos cinquenta ou sessenta anos, o neto do primeiro Vater dispõe, na verdade, de um capital considerável que lega ao seu filho e este ao seu e assim, ao cabo de cinco ou seis gerações, deparamos com um barão Rotschild ou um qualquer Goppe & C.ª. Não é um espectáculo grandioso? Um trabalho permanente de cem ou duzentos anos, paciência, inteligência, honradez, carácter, decisão, cálculo, a cegonha no telhado! Que mais querem? Porque nada há superior a isto e, a partir deste ponto de vista, começam a julgar o mundo e a castigar os culpados, quer dizer, aqueles que se diferenciam deles um milímetro que seja. Eis a questão: prefiro a agitação no estilo russo ou enriquecer à roleta. Não quero ser Goppe & C.ª nas próximas cinco gerações. Tenho necessidade de dinheiro para mim próprio e não me considero como um apêndice fornecedor do capital. Sei que disse muitas barbaridades mas não importa. Essas são as minhas convicções.»

(Dostoievski, Fedor - O jogador. Trad. Armando Luiz)


1 comentário:

Tio do Algarve disse...

Já não me lembrava dessa passagem! Excelente!