Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

31 dezembro 2013

António Gedeão - Poema do alegre desespero (para 2014)

Procurei uma imagem de esperança para vos oferecer como votos para 2014. Procurei um poema animador, procurei uma frase, procurei uma música. Nada conseguiu exprimir o meu sentimento contraditório de optimista emocional - que sou - e pessimista racional - a que a realidade me obriga. Foi então que encontrei este poema do alquimista das palavras, António Gedeão. Não consigo acrescentar nada. Quanto à pergunta final, responda quem souber.
Para todos os visitantes da Biblioteca de Jacinto, os meus votos de um 2014 melhor do que as mais optimistas expectativas. E que caia, que caia este ano, que caia o mais depressa possível, que caia o que já tarda em cair, o que já devia ter caído, que caia o nosso triste desespero.

Poema do alegre desespero - António Gedeão
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

2 comentários:

Anónimo disse...

Incrível encontrar esse blog, tão peculiar... e, ainda mais, um poema de Antonio Gedeão. Lembro ainda do meu encanto/espanto/delícia quando li pela primeira vez a *Lição sobre a água*; sim, ele é um alquimista em todos os sentidos. E, fugindo ao assunto totalmente, acrescento que também detesto o acordo ortográfico com todas as minhas forças. Custa-me acreditar que alguém encontre nele alguma serventia ou meramente alguma beleza. Abraços. Feliz 2014!

Tio do Algarve disse...

Releio este poema com muito gosto. E foi muito oportuna a sua paublicação!