A despenalização do aborto tem sido objecto de debate desde há muitos anos em muitos países. Até há alguns anos atrás, o debate situava-se, exclusivamente, no domínio das convicções íntimas, da fé. Um cristão consideraria que, a partir do momento da concepção, o pequeno ser é dotado de uma alma imortal feita à imagem e semelhança do Criador. Essa concepção religiosa tem contaminado o debate da pior forma porque o desvia da discussão humanista para a discussão de fé. Quando os Estados Unidos despenalizaram o aborto, no início da década de 70, pouco se sabia ao certo sobre a vida intra-uterina e o argumento religioso era, de facto, o principal entrave. Entretanto, não é só Deus que não dorme, a Ciência também não tem estado parada. Desde o uso da ecografia, durante os anos 70, a tecnologia que permite conhecer e compreender a vida intra-uterina não parou de evoluir mas os argumentos não acompanharam essa evolução; principalmente os argumentos dos que defendem a legalização. Para estes, parece absolutamente irrelevante toda a qualquer descoberta científica que possa abalar ou exigir um reajustamento nos seus argumentos.
E, afinal, esse conhecimento é essencial para formar uma opinião: porquê dez semanas e não oito ou doze? é irrelevante? qualquer número serve desde que se despenalize? quem concorda com as dez semanas concordaria com as catorze? e quem discorda das dez semanas, concordaria com oito? ou com seis? não interessa? em que fundamentamos a nossa decisão? no sim porque sim, no não porque não?
Infelizmente, tenho lido e ouvido muito "sim porque sim" e muito "não porque não". Essas respostas não me satisfazem, de todo. Sempre gostei de formar as minhas opiniões com base em fundamentos sólidos e tenho acompanhado assiduamente o debate, principalmente nos blogues pró e contra a despenalização. Não sou médica, nem sequer tenho uma formação de base em Ciências, e tudo o que sei sobre o assunto resulta de pesquisas na Internet, em sites especializados. E o que encontrei levantou-me algumas questões: por exemplo, ainda não consegui perceber como será feita a contagem das semanas: pelo critério clínico, ou seja, a contar da última menstruação (duas semanas antes da concepção), ou pelo critério genético, ou seja, a contar da concepção. Para quem a resposta é "sim porque sim" ou "não porque não" esta questão é irrelevante porque o referendo só serve para levar a água a um certo moinho. Para quem pretende dar uma resposta fundamentada não é uma questão dispicienda porque não estamos a discutir uma pergunta generalista mas uma pergunta específica que refere, expressamente, um determinado número de semanas.
Se as dez semanas forem contadas a partir da última menstruação, este prazo corresponderá a um embrião com oito semanas de idade (o período embrionário dura oito semanas, contadas a partir da concepção). Se as dez semanas forem contadas a partir da concepção, este prazo corresponderá a um feto de dez semanas de idade (quase todos os órgãos e estruturas do feto estão formados, só precisam de crescer e desenvolver-se até o parto) mas todos os sites da especialidade consideram que, nesta altura, temos uma gravidez de doze semanas e não de dez.
Não haverá debate sério nem esclarecedor enquanto estes critérios não forem muito bem definidos. Poderão, de um lado e de outro da "barricada", argumentar que isso não interessa nada, as pessoas já estão suficientemente baralhadas e isso só iria confundir mais. Mas, então, porque é que meteram o número de semanas na pergunta?
As razões da escolha V. As razões da escolha IV. As razões da escolha III. As razões da escolha II. As razões da escolha I.
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10 comentários:
Olá Clara,
Sou a favor da despenalização. Em primeiro lugar o aborto é uma prática reiterada ao longo da história da humanidade por toda a gente (obviamente do sexo feminino). Não é um crime de homicídio executado por psicopatas. Em segundo lugar porque todos os dias (hoje inclusivamente) estão cerca 20 mulheres portuguesas a fazê-lo ilíciatmente na clínica de los arcos em Badajoz (e um número indeterminado em Portugal). Conheço quem tenha feito e não os os considero criminosos. Logo se não são criminosos. Despenalize-se! Acho também rídiculo que a opçãp delas seja considerada um crime, a não ser em países não seculares como o Irão ou a Arábia Saudita. É uma situação rídicula e desigualitária porque só afecta as mulheres portuguesas pobres. Verdadeiramente pobres, pois a classe média e alta estão-se perfeitamente a "cagar" (desculpa a expressão!) para a lei, como é óbvio.
Por último - E ISTO É QUE ME IMPORTA - impressiona-me muito mais a crueldade a barbaridade que ainda se comete com inúmeras crianças em Portugal do que o aborto em si. Só nos últimos seis meses temos o relato de pelo menos quatro crianças com menos de sete anos brutalmente mortas / assassinadas pelos seus familiares. Isto é que é uma CATÁSTROFE!. Nunca aconteceria em países como a Holanda ou a Finlândia onde às poucas mulheres (ou famílias) socialmente desenquadradas ou com distúrbios de personalidade é facultada a opção do aborto para que ATROCIDADES como o que vimos à poucas semanas em Monção não aconteçam. Tenho dois filhos pequeninos e isto DESTROÇA-ME muito mais do que milhões de abortos.
Em termos filosóficos creio que para mim o valor DIREITO DAS CRIANÇAS está hierarquicamente acima do valor DIREITO À VIDA INTRA UTERINA.
Se me tivesse de confrontar com a opção ter sido abortado (em qualquer altura) ou morrer aos dois anos espancado pela minha mãe, ser abandonado com poucos dias num caixote do lixo, ou ser violado e assassinado pelo meu padrasto optava (sem dúvidas) pela primeira. Na verdade não era preciso tanto, bastava não ter o que comer, não ter mimo e não ter escola para optar logo pela 1ª.
Sei que não te vou convencer de qualquer forma aceita um abraço,
Adalberto
(vemo-nos no congresso)
Adalberto,
Eu ainda não disse aqui n'A biblioteca de Jacinto, qual a minha opção de voto... Como podes ver (se leres os outros posts) tenho estado a compilar e a reflectir sobre algumas das inconsistências das diferentes posiçõe, pró e contra. E olha que são muitas!
«Eu entendo que procuremos tentar desculpabilizar o aborto. Afinal, tantas mulheres já abortaram, porque é que não consideramos o aborto como uma coisa normal, comparada a uma excrescência fisiológica, e consideramos o feto uma coisa que se expele do corpo, porque indesejável? Porque é que mulheres e homens têm que viver em estado de culpa?»
É mais ou menos isto, um dos argumentos utilizados a favor da total despenalização do aborto até ao final do período de gravidez, porque é realmente disto de que estamos a tratar. Já lá vamos. Mas a propósito de culpabilização: quando alguém assume um erro, deixa a consciência muito mais leve e pode “partir para outra”. O problema de consciência está sempre em quem, obstinadamente, não quer reconhecer um erro cometido.
O que é o Humanismo? Resumido, é um movimento renascentista positivista antropocêntrico. Filosofias políticas geradas pelo Humanismo positivista: comunismo marxista, nazismo e neoliberalismo actual.
O positivismo já deu lugar ao post-positivismo, que se iniciou basicamente com Karl Popper quando este se insurgiu contra esse tal “Humanismo” que esteve na origem dos horrores do nazismo; com ele (Popper), nasceu o “racionalismo crítico”, que sugere que o Homem deve manter, perante o positivismo humanista, uma atitude crítica. É tudo o que pedimos aos Humanistas: uma atitude crítica.
O nazismo foi “humanista”, positivista; sofreu a influência de positivistas e grandes humanistas, entre outros, Rousseau e Nietzsche. Naturalmente que podemos com propriedade dizer que, em plena Idade Média, a ICAR inventou a Inquisição. Mas há 60 anos, a Europa viveu uma Idade Média tenebrosa, e a inquisição ao pé do nazismo positivista e humanista, foi uma brincadeira. O que passou com Mao na China e os milhões de mortos da revolução chinesa foi feito em nome do Humanismo; e foi o Humanismo que matou milhões no Camboja de Pol-pot.
Portanto, a “superioridade moral” do Humanismo é uma falácia perigosa, comparável à “superioridade moral” da esquerda que gerou Estaline e outros. Criticar uma fé religiosa e defender a superioridade da fé positivista e materialista, é sempre optar por uma fé contra outra, uma atitude sectária (de seita).
Um médico conta sempre a partir da singamia. Em termos médicos, quando falamos em 10 semanas, são dez semanas a partir da singamia, até porque as menstruações são irregulares e podem até nem aparecer antes da ovulação que esteve na origem da gravidez. Às dez semanas o feto está formado, mas desde a singamia que o ADN é único, distinto de todos os outros ADN de todos os outros seres humanos, e como dizem os humanistas, “o ser humano não se repete”. O nosso coração começa a bater à semana 4 de evolução no ventre da nossa mãe. Se o ser humano não se repete, como é que o Humanismo pode ir contra a singularidade existencial de um feto?
«Mas, então, porque é que meteram o número de semanas na pergunta?» Pergunta inteligente. E voltamos à culpa. O processo de desculpabilização social não se faz abruptamente sem choques culturais graves. O partido nazi alemão foi criado em 1918, e só em 1941 começou a cumprir o seu ideário (mais de vinte anos a preparar uma política de desculpabilização do Untermenschen Vernischtung. O povo alemão nunca poderia ter feito o que fez sem uma “anestesia” cultural conseguida ao longo de muitos anos de propaganda política. O povo alemão não é monstruoso, nem é diferente do povo português, neste aspecto. Se os nazis dissessem a um alemão, nos anos vinte, que os judeus deveriam ser todos os mortos, chegariam ao poder? Claro que não. Mas o holocausto judeu sempre fez parte da agenda política do nazismo.
De igual modo, se nos dissessem que este referendo pretende liberalizar o aborto até aos 8 meses e 29 dias, teria alguma hipótese de ganhar o SIM? Zero. Perdia. Por isso é que lá estão as semanas.
Orlando "Bom garfo"
Você mostra saber muito mais da parte biológica do que eu (tive de ir procurar o significado de "singamia"...). No entanto, tenho algumas dúvidas sobre a questão designadamente quanto à individualidade do zigoto (uma vez que pode dar gémeos) e também aos casos de "ovo cego" em que o zigoto inicia a evolução, nida mas só a placenta se desenvolve.
Os seus comentários serão sempre um interessante contributo para esta debate. Volte sempre.
Jeeesus?... Bom Garfo!
Tinha-me esquecido realmente que o Nazismo foi terrivel porque dizimou 45 MILHÕES.... DE FETOS HEBRAICOS... Que os khmers vermelhos cometeram o genocídio de dizimar 100 MILHÕES... DE FETOS cambodjanos, que o imperador MING construiu a grande muralha da china à custa de 300 milhões de FETOS chineses, e que Estaline enviou para os Gulags na SIBÉRIA 900 milhões... de FETOS dissidentes.
Pergunta?
Eu sei que provavelmente sou um TÓTÓ (PSEUDO HUMANISTA)DE ESQUERDA, mas o que é que esta galeria de sanguinários tem a ver com a despenalização do aborto? O que é que o kulus tem a ver com as kalças?...
O que é que os simpáticos estadistas têm a ver com as 40 portuguesas que acabaram de abortar hoje (clandestinamente ou no estrangeiro até às 13h, segundo as estatísticas), conduta essa que constitui crime à luz da lei Portuguesa.
Adeus e bom apetite, Mister Garfo! Bom Garfo. Eu, pessoalmente, perdi a fome.
Caríssimos
Acho a posição do Orlando exagerada mas acho que se pode daí retirar alguma coisa. Eu penso que o que ele quiz dizer foi (em linguagem chã) que de boas intenções está o inferno cheio.
Eu já me decidi (pelo sim) mas aprveito para por aqui um link que pretende esclarecer sobre a partir de quando se deve começar a contar o tempo:
http://www.medicospelaescolha.pt/informacao/gravidez
Rui pedro
Obrigada pelo link. Volte sempre.
fiquei muito surpreendido. confesso que há muito que tenho a minha opinião formada e por isso não tenho neste referendo a oportunidade que vc tem de coligir argumentários e de andar, por terras do sim ou do não, a descobrir razões ou a falta delas. mas gostei muito de ver esse movimento em procura de uma determinada razão. e levantando questões que me deixaram também desprevenido, como essa da contagem das semanas. parabéns.
JPN
Obrigada pelas suas palavras. A minha intenção é pôr as pessoas a pensar para além das ideias feitas que já têm. Por isso ainda não revelei a minha posição. Para ser lida sem preconceitos.
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